Temendo Le Pen, esquerda salva Macron e recupera o “neoliberalismo cor-de-rosa”
O grande derrotado nas eleições francesas não foi a extrema-direita. É certo que, se não fossem os espúrios acordos entre a Nova Frente Popular e os macronistas, o Reagrupamento Nacional teria crescido ainda mais. Só que o resultado do segundo turno não é exatamente uma vitória da esquerda.
Após o RN de Marine Le Pen liderar o primeiro turno das eleições, as lideranças da NFP caíram na armadilha da imprensa francesa e de Emmanuel Macron, abandonando inúmeras candidaturas próprias para aumentar as chances da direita neoliberal ligada ao partido do Renascimento vencer a extrema-direita.
A grande burguesia francesa chamou a uma “frente republicana” para criar um “cordão sanitário” formado pela esquerda e a direita neoliberal a fim de impedir uma vitória acachapante do RN, o que levou a acordos em cerca de 220 circunscrições eleitorais para que o candidato com supostamente menor chance de vencer o RN abandonasse a disputa a favor do candidato com maior chance. Só que a maioria dos abandonos foi da NFP para que os aliados de Macron pudessem vencer os aliados de Le Pen, embora a NFP tenha ficado em segundo lugar no primeiro turno, muito à frente da coligação de Macron.
Os rivais da extrema-direita ficaram aliviados com os resultados, pois agora o parlamento está pulverizado e não dominado pelo RN. Mas perderam a oportunidade de enterrar a direita macronista, ou seja, a direita neoliberal tradicional, que nos últimos anos vem pavimentando o caminho para o fascismo ao aplicar uma política cada vez mais semelhante à defendida por Le Pen.
De fato, a coalizão da direita governista perdeu 82 cadeiras na Assembleia Nacional, em comparação com as últimas eleições. Ela sofreu a redução em um terço dos seus deputados. Os Republicanos, também da direita neoliberal tradicional, perderam um quarto dos seus legisladores. A ala direita da Quinta República foi a maior derrotada, sem dúvida nenhuma.
Isso significa que seus votos foram divididos, sendo a maior parte obviamente destinada à extrema-direita. O RN aumentou sua bancada em 38%. A outra parte dos votos foi para a esquerda. A NFP conquistou 18% de cadeiras a mais do que nas últimas eleições. No entanto, foi a ala direita da NFP que abocanhou a maioria desses votos.
Enquanto o número de deputados eleitos pela França Insubmissa praticamente não se modificou, o Partido Socialista passou de 30 para 59, dobrando o número de cadeiras no parlamento. O PS, como toda a antiga social-democracia europeia (SPD alemão, Labour britânico, PSOE espanhol), aderiu ao neoliberalismo há muitas décadas. Não passa de uma ala esquerda da Quinta República, ou seja, do atual regime imperialista francês – basta lembrar que o PS governava a França quando ela invadiu o Mali, é anti-Rússia e ajuda a sustentar o sionismo.
O outro partido da ala direita da NFP beneficiado nessas eleições foram os Verdes, que apresentaram um crescimento de 18%. Portanto, as conclusões a partir dos resultados eleitorais são as seguintes: 1) a direita neoliberal macronista foi a maior derrotada, mas não caiu até o fundo do poço porque 2) a esquerda a salvou, com medo da extrema-direita, embora 3) dentro das forças de esquerda, a grande beneficiada tenha sido a social-democracia neoliberal, que aplica um “neoliberalismo cor-de-rosa” que pouco se diferencia de Macron 4) a extrema-direita foi apenas contida e, como disse Le Pen, sua vitória foi somente “adiada”.
A tensão social não será refreada
A grande burguesia imperialista francesa manejou o resultado das eleições com a meta principal de conter as massas populares que vêm varrendo as grandes cidades com uma revolta crescente nos últimos anos. Uma vitória aparente da esquerda contenta uma parcela dessas massas, que ainda acredita que o PS e a França Insubmissa levarão o seu país a uma transformação social.
Uma vitória da centro-esquerda, isto é, dos reformistas tradicionais que ora são escolhidos pela burguesia para administrar a França, também contém momentaneamente a escalada da extrema-direita ao poder, o que dá mais tempo para negociações entre as diferentes alas da burguesia.
Todas as cidades com mais de 200 mil habitantes votaram majoritariamente nos candidatos da NFP. Mas em Marselha, a segunda maior cidade do país, tradicional palco do movimento operário sulista, a RN conseguiu vencer em metade das circunscrições, o que serve de alerta para o possível direcionamento de uma parcela do proletariado para a extrema-direita.
Porque, no campo e nas pequenas cidades, o apoio ao RN já é muito visível. O interior da França é onde vive a grande base eleitoral da extrema-direita. E ele tem uma força que não pode ser ignorada. Foram justamente os pequenos e médios produtores rurais que geraram uma enorme crise por toda a União Europeia entre o final do ano passado e o início deste ano, desfilando seus tratores por todas as metrópoles (e em 85% dos departamentos franceses), como se lembrassem ao governo que eles existem e podem ajudar a derrubá-lo e a transformar o país.
Assim como o proletariado urbano, as classes média e baixa do campo também estão revoltadas com a política neoliberal. Nos últimos 40 anos, o Estado entregou nas mãos da iniciativa privada todo o dever de fornecer infraestrutura às populações rurais. Mas a iniciativa privada não investe no campo, porque não vê grandes retornos. Há muito menos hospitais e clínicas do que o necessário, por exemplo. Só o Estado tem plenas condições de garantir esses serviços, mas ele está ausente nas últimas décadas.
Os jovens do campo, tal como os das cidades, são os principais prejudicados. Têm menos acesso à educação e, portanto, menores chances de serem bem-sucedidos no mercado de trabalho, muito competitivo. Na última década, a taxa de jovens sem educação suficiente, sem emprego e sem realizar estágio tem sido muito mais alta no campo do que nas cidades e as mulheres do campo também conseguem menos empregos do que os homens, em comparação com as mulheres das cidades. A ideologia woke, apregoada tanto pelo regime Macron como pela esquerda reformista da NFP, não resolve nenhum problema dessas mulheres, que acabam sendo atraídas para a extrema-direita.
Um dos principais pilares que sustentam o regime capitalista é a aliança da grande burguesia com a classe média, tanto da cidade como do campo. E esse pilar está caindo aos poucos, conforme a qualidade de vida e as condições econômicas e materiais da classe média vêm se deteriorando acentuadamente neste século. A única alternativa para a melhoria de vida da classe média empobrecida é se aliar aos trabalhadores, que também estão crescentemente insatisfeitos. Ambas as classes vêm golpeando o regime francês, mas não de forma unificada.
Quem poderia unificar essas classes para combaterem juntas o regime, e assim fatalmente derrubá-lo, seria a esquerda francesa. O problema é que ela não se interessa em derrubar o regime, mas faz parte dele, alegremente. E se ela faz parte do regime, é seu cúmplice. Cúmplice de um regime que explora e oprime a maioria da população. A extrema-direita tem sabido utilizar esse fato em sua propaganda para atrair as classes médias urbana e rural e parte do proletariado desorganizado, principalmente nas cidades menores, onde a desindustrialização é muito visível. Mas, como ela também tem demonstrado fazer parte desse regime – ao se alinhar com Macron em diversas oportunidades –, ainda tem grande repúdio no meio das classes populares, que vêm se radicalizando mas carecem de direção política.
De qualquer forma, a extrema-direita segue crescendo. E, embora a burguesia francesa ainda não tenha se unificado em torno do RN, a crise da direita tradicional está levando uma parte significativa dessa burguesia a apoiá-lo. A tendência na França é que as classe populares, impulsionadas pelos trabalhadores urbanos, entrem em conflito também com a social-democracia e a esquerda em quem acabaram de votar, porque se ela formar ou fizer parte do novo governo, inevitavelmente dará prosseguimento à odiada política neoliberal. Uma convulsão social, que é cada vez mais provável, ameaçará varrer o regime e isso fará com que a parcela da burguesia que hoje acredita que a ala esquerda dos seus funcionários pode salvar o regime passe também a apoiar a extrema-direita como única força capaz de conter a revolta dos trabalhadores.
Então, todos os que foram salvos do precipício pela ingenuidade da esquerda e hoje se apresentam como campeões da democracia e da liberdade estarão saudando Marine Le Pen como a única capaz de garantir a ordem e a coesão social.
Eduardo Vasco
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Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, correspondente de guerra e autor dos livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”.