Segunda-feira negra?
Câmara dos Representantes vota "Não" ao plano Paulson/Bush
Segunda-feira negra? [1]
Hoje a Câmara dos Representantes dos EUA rejeitou os US$700 mil milhões da Lei de Emergência Económica e de Estabilização de 2008 do secretário do Tesouro Paulson. Aqui está a votação nominal da lei proposta: http://clerk.house.gov/evs/2008/roll674.xml . Paulson disse dispor dos votos, mas estava errado. A Câmara rejeitou a afirmação de Paulson de que comprar os activos apoiados por hipotecas ilíquidas dos bancos do país seria suficiente para salvar o sistema financeiro de um colapso iminente. O corpo de jurados permaneceu fora da questão, também. O Professor Nouriel Roubini, presidente do Roubini Global Economics, resumiu isto como se segue: “Você não está a resolver as duas questões fundamentais. Você ainda tem de recapitalizar o sistema bancário, e a dívida habitacional está em vias de permanecer alta”. Um grande número de economistas acredita que Roubini está certo. A lei não resolveria os problemas subjacentes.
Há uma crise. O sistema bancário está subcapitalizado, os mercados de crédito estão congelados, e os credores estrangeiros começam a reduzir suas compras da dívida dos EUA. É tudo mau. Ao mesmo tempo o número de baixas dentre os gigantes finaceiros – Bear Stearns, Indymac, AIG, Lehman, Washington Mutual – continua a crescer. Três outros bancos europeus com dificuldades foram acrescentados à lista de instituições financeiras que precisaram de assistência governamental de emergência no último fim de semana. Não é de admirar que o Congresso sinta ter de fazer alguma coisa para estancar a hemorragia.
Antes de o mercado de acções abrir na segunda-feira, os mercados de futuros desmoronaram pesadamente no território negativo, ao passo que o TED spread [2] , um indicador de stress no empréstimo interbancário, ampliou-se para 3,19, um nível que sugere mais uma instável semana de comercialização pela frente. Poderia isto ser uma outra Segunda-feira Negra?
A lei de Paulson foi concebida para evitar um crash de todo o sistema através do saneamento dos balanços dos bancos de modo a que eles pudessem retomar o crédito aos consumidores e aos negócios. A esperança era que uma infusão maciça de capital “faria o relógio andar ao contrário”, para os dias felizes da especulação com juros baixos e da bolha económica. Paulson é um “one trick pony” [3] que adere com firmeza à crença de que a criação de riqueza depende de um máximo de alavancagem e de uma divisa sempre a enfraquecer. Mas esta visão do mundo já não é mais aplicável depois de se atingir o Pico do Crédito, em que os consumidores já não são mais capazes de efectuar os pagamentos dos juros sobre os empréstimos e os negócios e instituições financeiras são forçados a reduzir seus gastos e enterrar seus activos tóxicos a preços de liquidação. O sistema está a desalavancar e nada pode travar isto. Paulson ainda tem de aceitar a nova realidade.
Além disso, não havia garantia de que os bancos utilizariam o dinheiro do modo que Paulson imaginava. Como me explicou um veterano da Wall Street: “Não vejo um centavo daqueles US$700 mil milhões a acabar por ajudar a economia mais ampla. Vejo-o ser utilizado para impulsionar preços de acções de modo a que iniciados possam salvar tanto quanto possível quando enterrarem as suas acções”.
Na verdade, os US$700 mil milhões são apenas parte de um maciço esquema “pump and dump” engendrado com a aprovação tácita do Tesouro e do Federal Reserve. Depois de os banksters terem descarregado seus títulos fraudulentos e papéis sórdidos sobre o Tio Sam, eles farão tudo o que precisarem para acolchoar os resultados líquidos e conduzir as suas acções para cima. Isto significa que lançarão o capital em activos tangíveis, divisas estrangeiras, ouro, swaps de taxas de juro, fraudes em carry trade e contas de banco suíças. A noção de que recapitalizarão de modo a poderem proporcionar empréstimos aos consumidores e aos negócios dos EUA com uma economia a desmoronar é um sonho fantástico.
Os EUA encaminham-se para a sua pior recessão em 60 anos. O mercado habitacional está em crash, a titularização acabou e a economia mais ampla está a deslocar-se rumo a recifes. Os bancos não estão dispostos a desperdiçar o seu tempo a tentar ressuscitar um moribundo mercado estado-unidense em que consumidores e negócios já estão espremidos ao máximo. De forma alguma; eles vão para pastagens mais verdes. Moverão o seu capital sempre que pensarem poder maximizar seus lucros. De facto, uma porção apreciável dos US$700 mil milhões provavelmente seria investida em commodities, o que significaria vem mais uma volta de especulação hiperbólica em futuros de alimentos e energia, levando os preços de combustíveis e alimentos para a estratosfera. Ironicamente, a generosidade dos contribuintes seria utilizada contra eles próprios, tornando ainda pior uma situação má.
Assim, mais uma vez, se uma lei de reabilitação não for aprovada, ninguém pode prever com certeza o que acontecerá. Aqui está como Tim Shipman resumiu isto em “Bailout Failure Will Cause US Crash”, no UK Telegraph:
“Responsáveis próximo de Paulson estão, em privado, a pintar um retrato muito mais negro da fragilidade da economia global do que aquele avançado pelo presidente George W. Bush no discurso da semana passada na TV.
Um republicano disse que a mensagem de responsáveis do governo é de que ‘a economia está em queda’. E acrescentou: ‘Poderíamos ver quedas de 3000 ou 4000 ponto no Dow [o índice mercado de Nova York que actualmente situa-se em torno dos 11.000]. Isso poderia acontecer em apenas um par de dias.
‘O que está a ser dito nos bastidores é que estamos a encarar algo como na década de 1930. Estamos a ver uma catástrofe, enorme, espantosa catástrofe. Todos estão extraordinariamente assustados. Isto vai ficar realmente asqueroso’.”
O medo na Colina do Capitólio é palpável, especialmente entre os democratas que conduziram tanto esforço quanto possível para aprovar o engendro de Paulson. O porta-voz da Casa, Nancy Pelosi, e colegas líderes do Partido Democrata, Chris Dodd, Harry Reid e o convencido tagarela de Massachusetts, Barney Frank, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para coagir dissidentes, suprimir resistência e apressar a votação da lei sem a habitual deliberação e debate. O deputado Marcy Kaptur (D-Ohio) foi um dos muitos irados membros do Congresso que atacou a brutalidade de Pelosi. Tudo isto ficou registado num vídeo de um minuto: http://redstaterebels.org/2008/09/wall-streets-greed-game/
Marcy Kaptur: “O processo legislativo normal que deveria acompanhar uma proposta monumental para salvar a Wall Street foi posto de lado. Sim, posto de lado! Apenas uns poucos iniciados estão a fazer a negociação. Estes criminosos têm tanto poder que podem encerrar o processo legislativo normal dos mais alto organismo legislativo desta terra. Todos os comités que deveriam estar a esquadrinhar cada palavra que está a ser negociada foram removidos. E isto significa que o povo americano foi removido. Nós estamos constitucionalmente jurados para proteger este país contra todos os inimigos externos e internos, e sim, meu amigos, há inimigos… A pessoas que estão a pressionar esta lei são exactamente as mesmas que foram responsáveis pela implosão da Wall Street. Elas foram fraudulentas então; e elas são fraudulentas agora. Nós deveríamos dizer Não a este acordo”.
Os republicanos estavam igualmente furiosos pelo modo como o grupo de Pelosi manteve as fileiras fora do circuito tanto quanto possível. O dep. Michael Burgess (R-Texas) resumiu os sentimentos de muitas congressistas que sentiam estarem a ser cilindrados por Pelosi & Co.: “Não vimos nenhuma lei. Temos estado aqui a debater conversas … Os republicanos da casa foram excluídos do processo e ridicularizados pelos líderes democratas da Casa como “impatrióticos” por não participarem no apoio à lei. Sr. Porta-voz, eu fui expelido de mais reuniões nas últimas 24 horas do que alguma vez julguei possível como representante eleito dos 800 mil cidadãos de N. Texas… Uma vez que não tivermos audiências, uma vez que não tivemos emendas, vamos pelo menos colocar esta legislação na Internet durante 24 horas e deixar o povo americano ver o que fizemos na calada da noite. Afinal de contas, eu nunca tive mais mensagens sobre uma questão única do que sobre esta lei que está diante de nós esta noite”.
O deputado Dennis Kucinich (D-Ohio) fez o melhor discurso do dia, reprovando a indústria financeira e defendendo os interesses dos americanos da classe trabalhadora.
Denni Kucinich: “A lei do salvamento dos US$700 mil milhões está a ser conduzida pelo medo e não pelos factos. Trata-se de demasiado dinheiro, em demasiado pouco tempo, a ir para demasiadas poucas pessoas, enquanto demasiadas questões permanecem não respondidas. Por que não estamos nós a ter audiências… Por que não estamos nós a considerar quaisquer outras alternativas além de dar US$700 mil milhões à Wall Street? Por que não estamos nós a aprovar novas lei para travar a especulação que disparou isto? Por que não estamos nós a erguer novas estruturas regulamentares para proteger os investidores? Por que não estamos nós a ajudar directamente os proprietários de casas com os seus fardos de dívidas? Por que não estamos nós a ajudar famílias americanas confrontadas com a bancarrota? Não será tempo para mudanças fundamentais no nosso sistema monetário baseado na dívidas de modo a que possamos libertar-nos da manipulação da Reserva Federal e dos bancos? Será isto o Congresso dos Estados Unidos ou o Conselho de Directores da Goldman Sachs?”.
Houve maior oposição à lei de Paulson do que a qualquer legislação no último meio século. A vaga de fundo do ultraje publico foi sem precedentes e, ainda assim, o Congresso, completamente isolado das exigências dos seus constituintes, continua a avançar com um erro crasso seguindo o mesmo roteiro pró-indústria dos seus gémeos ideológicos na Casa Branca. Não surpreendentemente, nem Pelosi nem qualquer elemento da liderança democrata chegou mesmo a encontrar-se com qualquer dos mais de 200 economistas importantes que declararam inequivocamente que o salvamento não atenderá os problemas centrais que estão a destruir o sistema financeiro. Ao invés disso, eles demoliram a demagogia de Bush e as afirmações espúrias do vendedor ambulante da G-Sax, Henry Paulson, um homem que até agora enganou o público sobre toda a questão relacionada com a subprime/fiasco financeiro.
Há partes do Emergency Economic Stabilization Act of 2008 de Paulson que todo contribuinte americano deveria entender, embora os media estejam a manter estes factos na sombra. Nas secções 128 e 132, a lei proposta teria de suspender a contabilidade “marcação a mercado” (“mark to market”). Isto significa que aos bancos não seria mais exigido que avaliassem o valor dos seus activos de acordo com o que activos semelhantes alcançassem no mercado aberto. Por exemplo: a Merrill Lynch vendeu US$31 mil milhões de títulos apoiados por hipotecas por US$6 mil milhões, o que signfica que títulos semelhantes deveriam ser apreçados de forma semelhante. Simples, não é? Os bancos precisam ajustar o valor daqueles activos no seus balanços em conformidade. Isto dá aos investidores e depositantes a capacidade de saber se o seu banco está em más condições ou não. Mas a lei de Paulson levantava este requerimento e permitia aos bancos assinalarem o seu próprio valor arbitrário a estes activos, o que é a mesma velha fraude da contabilidade estilo Enron.
A lei de Paulson também propunha a “Eliminação do FASB 157 e 0% de reservas”. Isto é tão grosseiro quanto parece. O FASB, ou Financial Services Regulatory Relief Act diz:
“Bancos Federais de Reserva são autorizado a pagar juros bancários sobre reservas sob a Secção 201 do Act. Além disso, a Secção 202 permite ao FRB mudar o rácio de reservas que um banco deve manter em relação às suas contas de transacções, permitindo um rácio de reserva zero se adequado. Devido a exigências orçamentais federais, a Secção 203 prevê que estas mudanças legislativas não terão efeito até 1 de Outubro de 2011”.
Isto é tudo algaravia legal para esconder o facto de que os bancos podem continuar a operar com capital insuficiente, o que é a razão porque o sistema está actualmente a explodir. Toda a atenção a isto: A razão porque o sistema está a explodir é porque às várias instituições financeiras foi permitido – via desregulamentação – actuarem como banco e criarem tanto crédito quanto elas quisessem sem um suficiente capital de base. Quando alguém lê sobre desalavancagem maciça, isto relaciona-se directamente com o facto de que negócios sub-capitalizados estavam a operar com demasiada dívida em relação ao seu capital. É isto em síntese; esqueça as CDOs, as MBSs, o CDS e toda a sopa de letras do lixo derivativo. Todas elas foram inseridas no sistema de modo que os bufarinheiros da Wall Street podiam expandir crédito sem supervisão de equilibrar triliões de dólares de dívida sobre as costas de uma única nota de dólar. É por isto que Paulson quiz suspender as regras que trariam a credibilidade e a confiança de volta ao sistema. Afinal de contas, aquilo pode afectar a capacidade da Wall Street para enriquecer-se a expensas do público.
Nouriel Roubini localizou um estudo de Barry Eichengreen, “And Now the Great Depression”, que aponta porque o plano de US$700 mil milhões de Paulson provavelmente fracassará:
“Sempre que há uma crise bancária sistémica há uma necessidade de recapitalizar o sistema bancário/financeiro para evitar uma excessiva e destrutiva contracção do crédito. Mas comprar activos tóxicos/ilíquidos do sistema financeiro NÃO é o caminho mais efectivo e eficiente para recapitalizar o sistema bancário…
“Um recente estudo do FMI de 42 crises bancárias sistémicas em todo o mundo apresenta evidência de como diferentes crises foram resolvidas.
“Antes de mais nada, apenas em 32 dos 42 casos houve intervenção financeira governamental de qualquer espécie; em 10 casos crises bancárias sistémicas foram resolvidas sem qualquer intervenção financeira governamental. Dos 32 casos em que o governo recapitalizou o sistema bancário apenas sete incluíram um programa de compra de maus empréstimos/activos (como aquele proposto pelo Tesouro dos EUA). Em 25 outros casos não houve compra governamental de activos tóxicos. Em seis casos o governo preferiu acções; em 4 caos o governo comprou acções ordinárias; em 11 casos o governo comprou dívida subordinada; em 12 casos o governo injectou cash nos bancos; em dois casos foi estendido crédito aos bancos; e em três casos o governo assumiu passivos bancários. Mesmo no caso em que foram comprados maus activos – como no Chile – foram suspensos dividendos e todos os lucros e recuperações tiveram de ser utilizados para recomprar os maus activos. Naturalmente na maior parte dos casos foram usadas múltiplas formas de recapitalização do bancos pelo governo”. (Nouriel Roubini’s Global EonoMonitor.)
Em suma, não funcionaria. Nem foi concebido para funcionar. A proposta de lei era apenas o meio de Paulson escavar uma canoa de prata para ele e os seus compadres de modo a que pudessem remar para algum paraíso offshore enquanto o resto de nós afundaria num oceano de dívidas sem fundo.
29/Setembro/2008.
O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=10402
Tradução: Resistir.
Notas
[1] O dia 19 de Outubro de 1987, quando o Dow Jones sofreu uma queda de 22 por cento, é conhecido como “Segunda-feira negra”
[2] TED spread: Diferença entre a taxa de juro T-bill e o Libor. É uma medida de liquidez e mostra o fluxo de dólares para dentro e para fora dos Estados Unidos.
[3] One Trick Poney: Filme de 1980, em que o personagem tenta determinadas acções e fracassa.