O que estaria por trás da “intromissão” dos EUA na compra dos caças suecos?

Recentemente, após a repercussão do pedido do Departamento de Justiça dos Estados Unidos por informações à empresa sueca Saab sobre a venda de 36 caças Gripen ao Brasil, o presidente Lula denunciou que a ação do governo americano era uma “intromissão” nos assuntos do Brasil e da Suécia.

Em geral, tem-se enfatizado que esse pedido se deve a um inconformismo de Washington porque a Boeing perdeu a concorrência para a Saab na licitação, em 2014 – embora o negócio com os suecos fosse mais favorável ao Brasil, que garantia a transferência de tecnologia, ao contrário dos americanos.

Pode-se aprofundar, contudo, o olhar sobre essa “intromissão” dos EUA por toda a indústria aeronáutica brasileira. Não se trata apenas da busca pelo contrato da venda de alguns caças. A Embraer (que quase foi entregue à Boeing há alguns anos) é dependente dos componentes para a fabricação de caças. Mesmo se tentar fabricar por conta própria, precisaria adquirir o motor dos EUA e o assento ejetável do Reino Unido, porque ela não tem tecnologia para produzi-los.

Como o Gripen tem componentes de fabricação americana, e os Estados Unidos não transferem tecnologia para o Brasil, eles poderiam controlar o que nós podemos ou não comprar. Esse é apenas um dos milhares de artifícios que uma potência imperialista tem à sua disposição para impedir qualquer mínima tentativa de desenvolvimento econômico, industrial, científico, tecnológico e militar de um país como o Brasil. Além disso, como a Suécia agora é membro da OTAN – e a OTAN é um instrumento dos EUA –, ela fica refém dos americanos neste imbróglio montado por eles.

Se o Departamento de Justiça dos EUA prosseguir com as “investigações” sobre a compra do Gripen, provavelmente terá sucesso em anulá-la, pois tanto o vendedor quanto o comprador tem a arma apontada para a sua cabeça. Dos 36 caças contratados, apenas oito já chegaram ao país.

Polícia do mundo, os EUA se colocam na posição de investigar (e julgar) as negociações bilaterais de quaisquer países a partir do seu Foreign Corrupt Practices Act (FCPA). Como informou Arthur Banzatto em sua tese de doutorado pela UFSC, citada pela Carta Capital, o Brasil é o segundo país do mundo que mais sofre ações do FCPA (24 ações contra o Brasil), atrás apenas da China (43).

A China, como é amplamente sabido, está envolvida em uma guerra comercial com os EUA há anos e é considerada a grande inimiga do país pelos responsáveis pela condução da política americana. Portanto, o que esse número de ações contra o Brasil poderia significar?

Que nós também somos considerados um inimigo dos Estados Unidos. E um inimigo que precisa ser neutralizado.

Henry Kissinger já se preocupava com as parcerias do Brasil com o “Sul Global” quando o Mercosul foi lançado, pois isso poderia “gerar uma potencial contenda entre Brasil e EUA sobre o futuro do Cone Sul”. Se Washington vê perigo no aumento do comércio brasileiro com seus vizinhos diretos, como não poderia enxergá-lo também – e ainda maior – no comércio com China, Rússia, África, Oriente Médio e Europa?

A necessidade de manter o Brasil adestrado para que não entre em competição com os gigantescos monopólios empresariais americanos que dominam o mundo foi um dos (se não o) motivos-chave do golpe de 2016. Para realizá-lo, foi montada pelo Departamento de Justiça a Operação Lava Jato, que devastou a economia nacional, destruiu ainda mais a nossa indústria e faliu (direta ou indiretamente) empresas que competiam com o mercado estadunidense nas mais diversas áreas, desde a construção civil até a produção e extração de petróleo. Naquela época, nem mesmo a Dolly e a JBS foram poupadas.

A sabotagem imperialista derrubou a Petrobras, prendeu o almirante Othon Pinheiro para melar nosso programa nuclear e boicotou a expansão da nossa plataforma continental. O Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, aparelhados e infiltrados pela CIA e pelo FBI (como corroboram as investigações do jornalista Bob Fernandes) estiveram na linha de frente da empreitada americana.

Em 2016, os procuradores da Operação Zelotes, instruídos pelos EUA, acusaram mesmo o então ex-presidente Lula de interferir indevidamente a favor da Saab na compra dos caças contra a concorrente Boeing. Os próprios acabaram reconhecendo, entre eles, que as acusações eram uma farsa. O inquérito foi arquivado por Ricardo Lewandowski em 2022.

Apesar da volta de Lula ao governo, o Brasil não se recuperou de nada daquele período nefasto. A PF continua sendo uma polícia filial do FBI, a PM é equipada por Israel e o exército (doutrinado pelos EUA) depende da tecnologia da Starlink, de Elon Musk, que monitora a Amazônia. O Congresso continua infestado de políticos que viajam para os EUA para receber orientações de como atuar contra o Brasil, os EUA seguem espionando o governo e os cidadãos brasileiros, os jornais são meras sucursais da imprensa americana, as redes sociais que usamos pertencem a empresários vinculados com o governo dos EUA (vide agora o próprio Musk), ONGs financiadas pelos maiores bilionários americanos se infiltram nos movimentos sociais e no Ministério do Meio Ambiente para fazer pressão contra a exploração dos nossos recursos naturais e o dólar desestabiliza a nossa economia. Funcionários estadunidenses vêm ao Brasil para interferir em nossos assuntos e, lá fora, exigem alinhamento absoluto em troca de um suposto apoio para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

São muitas as possibilidades para uma desestabilização completa do Brasil como a de 2012-2016, que culminou em um golpe de Estado. E, de fato, essa desestabilização já começou. Primeiro, porque naturalmente não é possível ter estabilidade para o proveito do povo brasileiro sendo uma semicolônia. Segundo, pois um governo com as características potenciais do de Lula não é aceitável para os EUA. Tanto é assim que Washington colocou o governo contra a parede tão logo ele assumiu. E agora, com uma Casa Branca que vê Lula como um aliado de “ditadores” e “terroristas”, essa pressão poderá ser sufocante.

Os americanos “estão desconfortáveis com a posição do Brasil no conflito com Rússia e China”, na avaliação do ex-ministro Eugênio Aragão, que fazia parte do governo deposto pelos Estados Unidos oito anos atrás. Ele acredita que irão tentar uma nova Lava Jato a partir das investigações sobre a compra dos caças suecos. “Isso é bem possível”, disse à Carta Capital.

A parceria com o BRICS e com a Nova Rota da Seda são essenciais para o Brasil reduzir a dependência do imperialismo americano, em particular no âmbito militar, de ciência e tecnologia. Já está muito claro que a “parceria” com os EUA e com os países da OTAN é uma armadilha que prende o Brasil numa senzala – ou no pelourinho. China, Rússia, Belarus, Irã e Índia são parceiros que podem suprir as necessidades imediatas de importação de materiais, transferir tecnologia e nos ajudar a ser autossuficientes.

Contudo, uma sacudida na política interna é indispensável para possibilitar qualquer tentativa mais ousada na área externa. Não dá para buscar uma independência maior mantendo a farra dos banqueiros e o corte de gastos – inclusive em áreas como a educação, como quer a burguesia vassala.

Eduardo Vasco

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Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, correspondente de guerra e autor dos livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”.


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