O poder e a revolta no Cazaquistão

Após um mês do início dos protestos no Cazaquistão, que teve por consequência a prisão de centenas de manifestantes, a implementação de reformas na cúpula do poder cazaque e promessas futuras de maior ação estatal contra a pobreza e a extrema desigualdade social, o país centro-asiático parece ter conseguido retomar alguma estabilidade. Embora informações cruciais sobre o desenrolar dos acontecimentos ainda permaneçam pouco claras, o atual cenário torna possível identificar consequências políticas duradouras.

De imediato, verifica-se dois resultados: 1) os presidentes Kassim-Jomart Tokayev e Vladimir Putin saem dos eventos como os grandes vencedores. Enquanto Tokayev consolidou seu poder “de facto” como chefe do Executivo cazaque, Putin reforça o papel da tutela militar russa sobre a Ásia Central e, em particular, o Cazaquistão; 2) há uma inflexão na política multivetorial cazaque, caracterizada nas últimas décadas pela busca de autonomia externa (mediante acenos cordiais a várias potências estratégicas no plano internacional). Vejamos com mais detalhes esses dois pontos.

Breve recuperação dos eventos

No último dia 2 de janeiro, manifestações de rua originalmente mobilizadas contra o aumento do combustível de gás liquefeito tiveram início em Zhanaozen, no Oeste do país, e logo se estenderam para importantes cidades, como Almati. Dois dias depois, quando os protestos já haviam assumido uma amplitude inédita, grupos armados se juntaram às mobilizações de massa com o objetivo de atacar alvos específicos, como edifícios da administração pública, aeroportos e canais de televisão. 

O governo de Tokayev mobilizou então suas forças de segurança para conter a evolução dos protestos e reprimir os atos de violência. A internet e as comunicações foram cortadas por alguns dias, cerca de 10 mil pessoas foram presas, outras 164 foram mortas. De imediato, acusações de uma nova “revolução colorida” começaram a ganhar força nos discursos oficiais de Pequim, Moscou e do próprio poder cazaque. Grupos violentos de manifestantes foram acusados de estarem armados, de serem formados por não-cazaques e de terem sido financiados por agentes estrangeiros, com o objetivo de desestabilizar politicamente o país.

É preciso entender o efeito dessas acusações: a ocorrência de uma ameaça estrangeira respalda o “artigo 4” da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC, aliança militar que além do Cazaquistão reúne Armênia, Bielorrússia, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão), item relacionado à resposta coletiva dos membros do grupo caso um deles seja atacado ou ameaçado por forças militares exteriores, sejam elas de organizações classificadas como “terroristas”, ou de Estados. Tais acusações, portanto, legitimam a convocação da OTSC por Tokayev, mesmo que as provas de participação estrangeira nos protestos não tenham sido apresentadas.

A OTSC atendeu à convocação imediatamente. No dia 6 de janeiro, uma força militar conjunta foi enviada, sendo a maioria dos soldados provenientes da Rússia (cerca de três mil); os outros membros participaram com algumas dezenas de soldados. Poucos dias depois, a situação foi controlada e, no dia 15 de janeiro, a Rússia anunciou o início da retirada das tropas da OTSC.

Uma guerra de facções políticas

Até os conflitos serem controlados, uma ampla disputa pelo controle do Estado estava sendo travada nos subterrâneos da capital Nur-Sultan (antes chamada Astana, renomeada em 2019 como homenagem ao ex-presidente). Tokayev, oficialmente presidente desde 2019, era uma figura menor diante do ex-presidente que governou quase três décadas, Nur-Sultan Nazarbaev. Após a recente passagem do cargo, Nazarbaev havia de fato conservado grande parte do poder através de sua influência política nas diferentes agências do Estado e de cargos oficiais herdados ou criados especialmente para ele. 

Desde sua saída da presidência, Nazarbaev acumulava o cargo simbólico de “líder da nação”, com cargos de efetivo comando – como o de presidente do forte partido governista Nur Otan, o de chefe da Assembleia do Povo (o parlamento), o de presidente do Conselho de Cooperação dos Estados de Língua Túrquica (que além dos cazaques compreende azeris, quiguizes, uzbeques e turcos), e o de chefe do Conselho de Segurança do Cazaquistão (o que, dentre outras incumbências, dava a ele o papel de comandante-em-chefe das Forças Armadas). Em 2021, Nazarbaev, já com oitenta anos, sinalizou ceder parte de seu concentrado poder: em abril, passou o comando do parlamento e, em novembro, da presidência do partido Nur Otan para o atual presidente Tokayev. Entretanto, manteve-se como uma figura central no governo, preservando o posto de chefe do Conselho de Segurança, e o apoio tanto de seus apadrinhados em postos-chave da administração pública, como de influentes oligarcas do setor privado – grupos dominantes que, ao final da Guerra Fria em 1991, ergueram conglomerados capitalistas a partir da pilhagem dos espólios resultantes da derrota econômica e implosão soviética.

Dessa maneira, as manifestações foram percebidas por Tokayev como uma chance para iniciar uma depuração dos homens de confiança de Nazarbaev no poder, tratando de destituí-los de suas funções. Assim, ministros-chave como Beibit Atamkulov, Mugzum Mirzagaliev e Marat Beketayev foram demitidos. Ganhou também repercussão a demissão do chefe do serviço secreto cazaque, Karim Massimov, preso poucos dias depois do início dos protestos, acusado de “alta traição” por uma suposta relação com os ataques armados (embora não tenha havido apresentação de provas ao público). Por fim, o próprio Nazarbaev foi destituído do cargo de chefe do Conselho de Segurança, que foi passado diretamente para as mãos do atual presidente.

O resultado dos protestos foi que Tokayev concentrou funções e poder como nunca antes, mas também sinalizou em favor dos manifestantes, buscando criar para si a imagem de um governo atento às demandas populares, um “governo de escuta” (“listening government”), no jargão da política internacional. Em seus discursos, atacou os oligarcas e homens de confiança do anterior governo Nazarbaev, culpados, segundo ele, pela corrupção e concentração de riqueza em um país profundamente desigual. 

Em suma, Tokayev indicou às massas enfurecidas quem seriam os responsáveis por suas mazelas: o clã Nazarbaev junto ao seu grupo de apadrinhados nos altos escalões do governo. E para acalmar os ânimos populares, propôs soluções práticas: além de cancelar o aumento das tarifas de combustíveis, prometeu criar impostos especiais sobre os ricos para usá-los no combate à pobreza, congelou os salários dos funcionários de alto-escalão do governo, e anunciou para o segundo semestre uma série de medidas econômicas que “ajudem a reduzir a desigualdade social”. Com isto, tentou se desvencilhar da condição de alvo das críticas. 

Desigualdade e riqueza no Cazaquistão

No Cazaquistão, enquanto a imensa maioria da famílias vive em média com o equivalente a 300 dólares mensais, uma elite de super-ricos concentra grande parte das receitas obtidas com as riquezas naturais da nação. Trata-se de um país rico que exporta petróleo, gás e urânio, mas também contém amplas reservas de terras raras, cobre, carvão e outros depósitos não metálicos.

Desde a independência (1991), a política de Nazarbaev buscou atrair investimentos estrangeiros para explorar os recursos do subsolo. Empresas estadunidenses e sobretudo europeias passaram a operar a partir de concessões fornecidas pelo governo. Atuavam em atividades variadas, que iam da exploração dos recursos naturais às grandes redes varejistas e de transportes. Obviamente, o fato do país ser um regime autoritário nunca foi impedimento para que houvesse empresas e capitais do Ocidente interessados em explorar as potencialidades das matérias primas cazaques.

A atração de investimentos estrangeiros esteve em consonância com a adoção de uma política liberal voltada para a abertura comercial e financeira que remonta aos anos noventa. Como resultado, a economia foi impulsionada pelas exportações do setor de hidrocarbonetos, enquanto os setores industrial e agrícola mantiveram-se atrofiados.

Nos últimos dez anos, a China se tornou um dos principais parceiros comerciais e fonte de grandes investimentos nos setores de infraestrutura e matérias primas; o Cazaquistão é percebido como um local geopoliticamente importante para o projeto das “Novas Rotas da Seda”, assim como um país seguro para os investimentos, por conta de sua estabilidade política, especialmente quando comparado com os outros países da Ásia Central.

O cenário de crescimento econômico com estabilidade política foi impulsionado pela alta das comódites nos anos 2000. Com isso, criou-se uma casta de oligarcas ricos apadrinhados pelo governo, que capturavam os recursos do subsolo. No Cazaquistão, cerca de 60% da economia está em poder de empresas sob o comando do Estado (especialmente através de controle acionário majoritário), enquanto as empresas privadas costumam operar como fornecedoras para as empresas estatais. É neste setor privado onde se concentram os oligarcas “criados” pelo presidente Nazarbaev. 

Dentre eles, estão inclusive familiares do ex-presidente. A filha mais velha, Dariga Nazarbaev, fundou a principal rede de televisão do país, a agência Khabar, além de deter participações em diferentes empresas como a Europe Plus Kazakhstan e Alma-Invest-Holding. Das descendentes do presidente, foi a única a ingressar na política, tornando-se deputada e, posteriormente, senadora. Já a filha do meio, Dinara Nazarbaev, junto com seu marido Timur Kulybaev, são donos do Banco do Povo (Halyk Bank), o banco mais importante do país e ligado ao setor petrolífero. Por fim, a filha mais nova, Aliya Nazarbaev, é dona da Elistroy, empresa líder no setor de construção civil cazaque. O clã Nazarbaev, com Nur-Sultan e filhas, figura na revista Forbes (EUA), na lista das pessoas mais ricas do mundo.

A partir de 2015, a economia cazaque começa a desacelerar, dada a queda dos preços de matérias primas, como o petróleo – uma consequência da crise econômica mundial capitalista que explode em 2008, reduzindo a demanda por comódites. Neste contexto, também os investimentos estrangeiros sofreram retrações nos últimos anos. Mais recentemente, com a nova crise provocada pela pandemia da covid-19, houve deterioração dos índices sociais, com aumento da inflação, do desemprego e o crescimento da pobreza. 

O declínio econômico fez com que os acionistas das empresas de hidrocarbonetos pressionassem pelo fim dos subsídios e pela paridade com os preços internacionais. Como resultado, os preços dobraram no início de janeiro deste ano, conformando o gatilho que restava para que manifestações espontâneas – sem lideranças que se destacassem – tomassem as ruas das principais cidades. Junto à revolta pelo súbito aumento dos preços dos combustíveis, se somaram críticas à plutocracia e ao modelo econômico. Diante de um contexto que mesclou uma crise econômica a uma convulsão social, Tokayev percebeu o momento para finalmente assumir o controle pleno do Estado, varrendo para fora a burocracia pró-Nazarbaev.

A tutela militar russa

A afirmação do poder interno de Tokayev não seria possível sem o apoio da Rússia. Ao liderar uma coalizão militar sob a bandeira da OTSC pela primeira vez na história (a organização existe desde 1994), Vladimir Putin enviou um claro sinal ao resto do mundo: naquela região da Ásia Central, antiga periferia soviética, os russos ainda são os donos do jogo. A intervenção rápida e eficiente mostrou a capacidade russa de apoiar regimes aliados dentro de sua zona de influência. Ao mesmo tempo, a retirada gradual das tropas evidenciou que o interesse não é ocupar, mas sim manter uma relação de tutela militar, intervindo para garantir a estabilidade da região como um todo. Putin buscou passar a imagem de um parceiro estratégico confiável, que protege governos aliados intervindo de forma cirúrgica. 

Portanto, se havia alguma real mobilização de tipo “revolução colorida” (até aqui, algo bem duvidoso), ela se mostrou um retumbante fracasso.

Um abandono da política externa multivetorial?

Essa situação, na qual Putin e Tokayev reforçaram a cooperação para a extração de vantagens mútuas, pode ter como primeiro efeito uma inflexão na política externa multivetorial iniciada no governo Nazarbaev. Desde os anos 1990, o Cazaquistão anuncia buscar parcerias comerciais com variados países (os vetores); essa estratégia serviu para afastar um pouco a política externa do país da órbita russa, atrair investimentos estrangeiros (especialmente voltados para a extração e comercialização dos recursos naturais) e projetá-lo como um defensor global dos valores da cooperação multilateral.

Aproximações com países europeus, os Estados Unidos e a China foram feitas tanto no campo militar como na esfera comercial. Entretanto, a Rússia jamais deixou de ter papel central para a política externa cazaque. O Cazaquistão depende do acesso ao território russo para conseguir escoar produtos como petróleo, gás e urânio para os mercados europeus. A elite política e econômica cazaque fala russo, e cerca de 20% da população (algo como 3,5 milhões de pessoas) são consideradas etnicamente russas. O cosmódromo de Baikonur, situado no Sul do país, continua sendo utilizado pela Rússia para lançamento de foguetes. Existem acordos de cooperação em diversos níveis, com destaque especial para o campo militar e econômico. Isso tudo significa que, apesar dos discursos, a Rússia nunca deixou de representar um parceiro estratégico de primeira ordem, desde a independência do país.

Com a intervenção da Rússia através da OTSC, o governo cazaque demonstrou depender bastante do apoio do vizinho do norte: para reforçar suas forças militares, controlar manifestações populares e garantir estabilidade política. Nesse sentido, Tokayev enfraqueceu substancialmente a proposta multivetorial, que através de múltiplas parcerias internacionais buscava maior autonomia externa (sobretudo frente à Rússia). 

Em suma, um impactante efeito das manifestações reprimidas foi explicitar a insustentabilidade da política externa cazaque, encampada pelo discurso multivetorial – afinal, Tokayev demonstrou depender do apoio externo da Rússia para garantir a governabilidade doméstica.

Pedro Rocha Fleury Curado* e Yuri Martins-Fontes**

 

 

*Doutor em Economia Política, professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.

**Doutor em História Econômica, filósofo e escritor, coordenador do Núcleo Práxis da USP.


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