Guam Não Vive Segura com Exército dos Estados Unidos
ENTREVISTA COM LISA NATIVIDAD
Guam tem estado no centro do noticiário internacional nos últimos dias devido à troca de fortes agressões verbais entre Washington e Pyongyang, e as ameaças de que a Coreia do Norte poderia atacar a pequena ilha da Micronésia com bombas nucleares. “É a presença dos Estados Unidos aqui que nos torna alvo preferencial para a Coreia do Norte em seu conflito com os Estados Unidos”, afirma na seguinte entrevista a acadêmica e ativista anti-colonização guamesa, Lisa Natividad.
“Guam não se sente segura com o Exército dos Estados Unidos”, conta Lisa enquanto o mandatário norte-coreano Kim Jong-um afirmou, na primeira semana deste mês, que estava examinando cuidadosamente a ilha guamesa, e que enviaria um míssil balístico intercontinental para o oceano, a 40 quilômetros de Guam.
Ao apontar que a ilha vizinha serve como armazenamento de bombas dos Estados Unidos, um porta-voz do Exército norte-coreano afirmou em 9 de agosto à agência de notícias KCNA, controlada pelo regime de Pyongyang: “Esta grave situação exige que o KPA [Forças Armadas] observe de perto Guam, o posto avançado e a cabeça de praia por invadir a Coreia do Norte, e necessariamente tomar ações práticas significativas, para neutralizar isso”.
Desde então, a sempre tendenciosa mídia ocidental, pró-Washington, passou a alardear que Pyongyang estava na iminência de atacar Guam com armas nucleares, fato negado por Kim nesta semana.
Sobre Guam, cuja capital é Hagåtña, vivem 162.742 pessoas cuja principal etnia é a dos chamorros. A líder social afirma também que seu povo conhece bem o “terrível poder de uma bomba nuclear”, ao lembrar que a ilha asiática a oeste do Oceano Pacífico foi invadida durante a Segunda Guerra Mundial pelos japoneses, fazendo do território guamês uma zona de guerra ativa de 1941 a 1944.
Território estadunidense desde 1950, após o final da Segunda Guerra Mundial, Guam abriga três bases militares dos Estados Unidos que ameaçam os rivais norte-americanos na região – China e a própria Coreia do Norte -, e sofre com o imperialismo dos Estados Unidos nos mais diversos aspectos da vida cotidiana (imagem abaixo, aviões da Força Aérea dos EUA sobrevoam a ilha de Guam).
“Pobreza, moradia precária, abuso de substâncias tóxicas, encarceramento, evasão escolar, gravidez na adolescência, suicídio, câncer e problemas de saúde mental – apenas para citar alguns casos”, são parte dos problemas, de acordo com Lisa, enfrentados especialmente pelos chamorros, na ilha.
A cultura local foi um dos primeiros valores atacados pelo imperialismo em Guam, como sempre na história em todo o mundo. “Estou fazendo aulas para aprender minha própria língua… Outro subproduto da colonização!”, afirma Lisa, habitante da pequenina cidade de Inarajan, onde habitam cerca de 2.200 pessoas.
“Estamos felizes em alcançar a mídia global, disposta a ajudar-nos a espalhar a mensagem da colonização e a expansão da militarização dos Estados Unidos, a fim de ajudar a impulsionar o diálogo e construir a solidariedade global em prol de um mundo livre e pacífico”, declara Lisa, professora adjunta da faculdade de Serviço Social na Universidade de Guam, e fundadora e presidenta de Guahan Coalition for Peace and Justice (Coalizão de Guam pela Paz e Justiça), e membro de Guam Decolonization Commission (Comissão pela Descolonização de Guam).
Confira a seguir, a íntegra da entrevista com Lisa Natividad.
Edu Montesanti: Lisa Natividad, muito obrigado por conceder esta entrevista tão importante. Qual a missão de Guahan Coalition for Peace and Justice, presidida por você, por que e quando foi fundada, e como atua?
Lisa Natividad: A Guahan Coalition for Peace and Justice é uma organização sediada em Guahan [Guam] fundada por um grupo de mulheres em 2006, após o anúncio da assinatura de um acordo entre os Estados Unidos e o Japão para transferir oito mil fuzileiros navais estadunidenses de Okinawa e da Coréia do Sul, para Guahan.
Nós, mulheres, reunimo-nos horrorizadas por como nossas vidas seriam impactadas se o Departamento de Defesa dos Estados Unidos aumentasse a ocupação em nossa ilha. Decidimos que era hora de assumir uma posição, e reivindicar nosso poder lutando pelos direitos da nossa pátria.
Nossa coalizão concentrou-se nas questões de descolonização política e desmilitarização da nossa ilha. Fizemos isso, principalmente, através da organização de palestras, fóruns públicos, divulgação pela mídia e apresentação dos nossos problemas diante de entidades internacionais como as Nações Unidas, e pronunciando-nos através de campanhas em outros países.
Qual o estado de espírito do povo guamês hoje, na mira da guerra de palavras entre Washington e Pyongyang, sob risco de ataques nucleares?
Coletivamente, eu diria que o povo de Guahan apresenta reações mistas às ameaças nucleares da Coréia do Norte. Por um lado, desejamos poder acreditar em nosso governador e no presidente dos Estados Unidos, que estamos seguros e que a tecnologia militar dos Estados Unidos pode combater os ataques da Coreia do Norte.
Contudo, conhecemos muito bem as realidades da guerra. Por causa da presença dos Estados Unidos em nossa ilha, fomos invadidos durante a Segunda Guerra Mundial pelo exército imperial japonês, e zona de guerra ativa de 1941 a 1944.
Consciente de um ataque iminente, os Estados Unidos retiraram todo seu pessoal militar e seus dependentes, deixando nosso povo indígena chamorro para trás sofrendo em uma guerra – em nome deles.
Durante esse período, nosso povo sofreu grandes atrocidades de guerra que incluem estupros, famílias tendo que morar em barracas, fome e desidratação, e finalmente a morte.
Nós, chamorros, continuamos sofrendo do trauma histórico desta experiência que afetou o que somos hoje. Então, enquanto queremos acreditar que os EUA nos manterão seguros durante esses dias de ameaças nucleares, nossa experiência passada tem sido exatamente o oposto.
Na Micronésia, conhecemos o terrível poder das armas nucleares. Nosso país vizinho, Ilhas Marshall foi local da detonação de 67 bombas nucleares pelos Estados Unidos. As pessoas de Marshall foram evacuadas das ilhas residenciais de Bikini, Rongelap e Enewetak, convidadas para assistência pelo serviço da humanidade para a promoção da paz mundial.
Hoje, sabemos que as bombas nucleares não promovem a paz mundial, mas sim uma grande ameaça para alcançá-la. Os marshaleses continuam sofrendo problemas de saúde que ameaçam a vida incluindo câncer, defeitos congênitos, parto de bebês, apenas para citar alguns. A nação está tão contaminada com a radiação que ainda não consegue retornar às suas ilhas residenciais, e se fizerem isso, o farão com alto risco.
O professor Michel Chossudovski me disse, recentemente: “A República Popular Democrática da Coreia [do Norte] não ameaçou bombardear Guam: o que eles disseram é que enviariam um ICBM [míssil balístico intercontinental] para o oceano a 40 quilômetros de Guam, houve declaração oficial e a mídia ocidental imediatamente distorceu o pronunciamento”. Sua visão disso, Lisa.
Isso provavelmente é verdade. Além disso, a Coreia do Norte nunca disse que enviaria um ataque preventiva … sempre manteve a posição de que só atacaria depois de ter sido atacada.
Quais as conseqüências da colonização norte-americana de Guam sobre a economia, a política, a educação e a cultura em geral, sobre o sistema de saúde, a mídia, o Exército e sociedade em geral, Lisa?
A colonização norte-americana de Guahan criou grandes problemas à nossa ilha e ao nosso povo. Guahan está na lista das Nações Unidas de Territórios Não Autônomos desde o início da lista em 1945.
Enquanto outras colônias do mundo tiveram a oportunidade de se descolonizar e afirmar a independência, Guahan teve negado este direito humano mais sagrado, pelos Estados Unidos. Em 1985, a ilha introduziu o Guam Commonwealth Act no Congresso dos Estados Unidos e, depois de algumas negociações, ele foi finalmente negado em 1997.
A ilha continua hoje educando a comunidade no processo de descolonização, através do trabalho da Guam Commission on Decolonization(Comissão de Guam sobre a Descolonização), com a esperança de resolver seu status político nos próximos anos.
Como sujeitos territoriais, não temos o direito de votar para o presidente dos Estados Unidos. Além disso, recebemos um assento para delegado no Congresso no Congresso dos Estados Unidos, no entanto essa pessoa não possui direitos de voto completos.
O delegado pode votar no mesmo nível do Congresso – mas apenas se o voto não for um desempate.No caso de a votação romper um empate, será considerado nulo e sem efeito. O delegado não consegue votar no plenário no comitê integral.
Essa realidade é um grande escárnio contra nossa ilha, e simplesmente cria uma ilusão de inclusão no sistema democrático norte-americano. Além disso, nos é oferecido apenas um sétimo do financiamento federal disponível para os Estados.
Os Estados Unidos também aplicaram unilateralmente uma série de políticas restritivas federais-territoriais que inibem a criação de uma economia local viável. Um exemplo disto é o Jones Act, que exige especificamente que todos os bens transportados por água entre os portos dos Estados Unidos sejam transportados em navios com a bandeira dos Estados Unidos, construídos nos Estados Unidos, de propriedade de cidadãos estadunidenses, e os cidadãos e residentes permanentes dos Estados Unidos são os únicos que podem servir em suas respectivas tripulações.
O Jones Act é altamente prejudicial para a economia de Guahan, pois não permite que as importações de linhas de transporte com base na Ásia sejam enviadas diretamente à ilha. Isso resulta em um custo muito maior de bens.
Mas, em última instância, o maior prejuízo da nossa colonização é a ausência de qualquer poder político. Não temos voz em nossa própria pátria para tomar as decisões federais estabelecidas, impactando nossas vidas.
Guahan e os povos indígenas sofrem uma condição colonial clássica, com as maiores taxas de problemas sociais na ilha em comparação com os não chamorros.
Por exemplo, os chamorros têm as taxas mais elevadas nos seguintes quesitos: pobreza, moradia precária, abuso de substâncias tóxicas, encarceramento, evasão escolar, gravidez na adolescência, suicídio, câncer e problemas de saúde mental – apenas para citar alguns casos.
Essa realidade serve como motivação para a descolonização política, a fim de que Guahan e a autodeterminação de seu povo possa orientar seu futuro.
Você falou do Guam Commonwealth Act: por favor, explique o que foi isso, Lisa.
O Guam Commonwealth Act foi um projeto de lei enviado para o Congresso dos Estados Unidos, que continha uma forma de autogoverno para Guahan, alterando nosso status político para o de uma comunidade de Estados Unidos.
Não foi uma escolha perfeita, mas era mais vantajosa em comparação com um território não incorporado, como somos hoje.
E como seu povo se sente sendo uma colônia dos Estados Unidos? O que os guamenses pensam e dizem sobre isso?
As pessoas em Guahan estão cada vez mais conscientes dos impactos da nossa atual realidade política de colonização.
Na década passada houve uma avalanche de ativismo da juventude da ilha, intolerantes diante do nosso status atual, comprometidos em resolver essa questão e exercer seu sagrado direito à autodeterminação.
Os protestos públicos, os ensinamentos sobre a independência, as manifestações pacíficas e até mesmo um processo contra o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, foram todos empregados como estratégias de mudança social.
Essas atividades foram particularmente inflamadas quando os Estados Unidos anunciaram os planos de transferir oito mil de seus fuzileiros navais de Okinawa, no Japão, para Guahan. Como comunidade, as pessoas tinham preocupações quanto ao impacto daquilo na segurança das nossas mulheres e crianças, da nossa saúde, do nosso meio ambiente e na nossa vida cotidiana.
Todos falam chamorro em Guam, Lisa?
Não, infelizmente nossa língua não é falada por todos, de maneira que agora estou fazendo aulas para aprender minha própria língua… Outro subproduto da colonização!
E o que você pode dizer das posições do governador de Guam, Eddie Baza Calvo, em favor do povo guamense e do progresso local, contra esse neocolonialismo?
O governador convocou a Comissão de Guam sobre a Descolonização, de modo que nos dá esperança em sua liderança.
No entanto, ele tem grande confiança nas capacidades de defesa militar dos Estados Unidos, e assegurou à comunidade que “estamos seguros” diante das ameaças nucleares.
Os guameses se sentem seguros com o Exército dos Estados Unidos?
Algumas pessoas compram a retórica norte-americana de que suas forças armadas estão presentes na ilha, “proteja-nos”. No entanto, com o crescente estabelecimento do ativismo e do conhecimento comunitário mais profundo das realidades da colonização e da militarização, as pessoas estão começando a questionar exatamente o quanto é segura a presença dos militares dos Estados Unidos em Guahan.
Pois, na verdade, é a presença dos Estados Unidos aqui que nos torna um alvo primordial para a Coreia do Norte em seu conflito com os Estados Unidos. A Coreia do Norte é famosa por dizer que atacará a Base da Força Aérea de Andersen no norte da nossa ilha, por causa da presença de bombardeiros B1 e B2 Stealth estacionados ali.
Isto é muito claro: se não tivéssemos esses aviões, então não seríamos alvo. Nossas ilhas vizinhas na Micronésia não são alvos; mas somos por causa dessas bases.
Então não, não nos sentimos seguros e seguros com os militares estadunidenses aqui.
Além disso, existem quase 800 bases militares dos Estados Unidos fora do território norte-americano, o que é inaceitável. Os militares devem ser convocados apenas para a defesa, e contidos dentro das fronteiras de um país.
E a imprensa em Guam, Lisa? Qual influencia da mídia sobre seu povo? Por favor, fale um pouco mais sobre isso. Levanto novamente esta questão porque, fora nossa mídia realmente alternativa, na América Latina temos uma grande mídia totalmente subjugada em favor dos interesses do Pentágono mediático, isto é, do regime de Washington colonizador de mentes, que aprisiona almas em nossa região.
Também somos atormentados pela mesma experiência em que nossa mídia local, ligada aos Estados Unidos, relata principalmente a partir da perspectiva de doutrinar as pessoas a acreditar que os Estados Unidos são a maior potência mundial, e que a ocidentalização e a norte-americanização são o caminho para o sucesso.
A mídia também é usada para promover a agenda global dos Estados Unidos, apenas contando um lado de situações geopolíticas e justificando o complexo industrial militar dos Estados Unidos.
Esta postura mediática, quando não é confrontada, resulta em um aumento do patriotismo dos Estados Unidos e da contínua colonização de Guahan.
Muitas vezes, os meios de comunicação locais deturpam histórias sobre os esforços para descolonizar e desmilitarizar Guahan. Por isso, estamos felizes em alcançar a mídia global, disposta a ajudar-nos a espalhar a mensagem da nossa colonização e a expansão da militarização dos Estados Unidos, para ajudar a elevar a conversa e a construir a solidariedade global para um mundo livre e pacífico.
O que os Estados Unidos devem fazer para respeitar os interesses guamenses, tanto a economia como a auto-determinação do povo e a paz em sua nação?
A fim de respeitar os interesses dos chamorros em Guahan, os Estados Unidos devem apoiar e participar do processo de descolonização da ilha.
Nosso plebiscito terá três opções de status na votação: Estado (ou assimilação no poder de administração), associação livre, ou independência. A vontade das pessoas precisa ser suportada.
Esperamos ter um plebiscito em 2018 que resolva nossos problemas de status político. Quando isso aconteces, poderemos decidir o grau de militarismo que queremos estabelecer em nossa ilha.
A escolha deve ser nossa e de nenhuma outra pessoa. Para alcançar a paz, devemos sempre implementar diplomacia e respeito mútuo aos outros. Isso implica respeitar todos os níveis dos direitos das pessoas.