‘Drones’, Negócios & Genocídio. A Mais Nova Tecnologia da Guerra e o Bilionário Mercado das Mortes Sistemáticas
Nunca na história o avanço tecnológico matou tantos inocentes, ao mesmo tempo que eleva sem precedentes o lucro do negócio das guerras.
“O que posso dizer, como alguém que trabalhou dentro desse programa massivo, é que se trata de algo assustador”, disse Lisa Ling, ex-militar da Força Aérea dos Estados Unidos e uma das protagonistas do documentário National Bird dirigido por Sonia Kennenbeck, lançado em novembro de 2016 em que Lisa e mais dois denunciantes detalham a ineficácia e o terror produzido pelo programa unilateral e onipresente – além de, no mínimo, discutível do ponto de vista legal – de drones utilizado por controle remoto tanto pela força militar de Washington quanto pela CIA. “(O uso de drones) é global, recebe informações de qualquer lugar, a qualquer momento; dispara contra pessoas de qualquer lugar, a qualquer momento”, acrescentou Lisa em delação após ter viajado ao Afeganistão e constatado como aquilo em que participava não se tratava de Guerra contra o Terror, mas de uma guerra promotora de terror.
Procurada por esta reportagem, Lisa, militar desde 1991 e sargenta técnica do programa de veículos aéreos não tripulados entre 2007 e 2009, afirma que “o envio de drones também permite que a guerra seja invisível”. De acordo com a ex-militar, os drones tornam cada vez menos necessário o envio de tropas o que, segundo Lisa, escancara o caminho para mais crimes de guerra. “Há menos discussão ou prestação de contas, porque (o envio de drones) não é anunciado publicamente como ocorre frequentemente quando enviamos tropas. Aqueles que vivem debaixo dos drones armados estão em constante estado de terror, portanto não acredito que possamos nos engajar em uma guerra contra o terror com mais terror”. Perguntada sobre os maiores estragos contra vidas humanas que presenciou, Lisa esquiva-se e não responde; questionada sobre o número de mortes desde George W. Bush (2001-2009), incluindo civis nos sete países onde os Estados Unidos utilizam a tecnologia aérea hoje, a ex-sargenta técnica das Forças Armadas norte-americanas é direta: “Não posso comentar sobre isso. Me desculpe”.
Desde que bombas foram instaladas em drones no final de 2001, a Casa Branca, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos e a CIA recusam-se a detalhar o programa de veículos aéreos não tripulados, sobretudo as mortes de civis causadas por eles, cujos números têm historicamente superado, em muitas vezes, aos de supostos combatentes inimigos países onde os drones são acionados portando bombas. Até maio de 2013, sequer a guerra com drones era reconhecida por Washington; foi quando, intensamente pressionado pelos ataques a inocentes com a nova tecnologia de guerra, o então presidente Barack Obama (2009-2017) fez o principal discurso de contraterrorismo de seu segundo mandato na National Defense University em Washington D.C., onde pretendeu especificar a “eficácia” e a “precisão” dos drones, não sem sofrer protesto: a escritora e ativista norte-americana pelos direitos humanos, Medea Benjamin, fundadora da organização pelos direitos humanos CodePink – Women for Peace, interrompeu diversas vezes Obama denunciando o programa de drones até ser arrastada para fora do auditório por seguranças. Também procurada pela reportagem, a ativista diz que a tentativa de Obama de justificar o uso indiscriminado de drones foi o que a deixou profundamente indignada. “Estive no Iêmen, Paquistão e Afeganistão, onde conheci famílias que perderam seus entes queridos pelos ataques com drones norte-americanos. O presidente disse que utilizávamos drones apenas na certeza de que nenhum civil seria morto, mas eu sabia que muitos civis estavam sendo mortos e que o governo dos Estados Unidos escondia essa informação do público norte-americano. Senti-me obrigada a desafiar o presidente por causa de um programa que, matando muitas pessoas inocentes, nos tornava mais odiados no mundo todo. Como advogado constitucional, ele nunca deveria ter autorizado o uso de drones assassinos, particularmente em países onde não estávamos em guerra”.
Os sucessivos regimes norte-americanos têm relutado também em desclassificar os documentos solicitados judicialmente dentro do território norte-americano. O que mais se sabe de drones vêm a público através de suas vítimas, de denunciantes como Lisa Ling, de ativistas por direitos humanos e de cabos secretos revelados por WikiLeaks tal qual o emitido pela CIA em 7 de julho de 2009, liberado pela organização de Julian Assange em 18 de dezembro de 2014. Intitulado CIA Best Practices in Counterinsurgency (As Melhores Práticas de Contrainsurgência da CIA), o telegrama revela a ineficácia da estratégia dos ataques com drones especificamente no Afeganistão, ao reconhecer que o Taliban substitui facilmente seus líderes mortos em bombardeios – como sempre ocorreu em todo tipo de ataque das forças de coalizão nesta, que é a mais longa guerra da história dos Estados Unidos. Para o ativista britânico pelos direitos humanos ouvido pela reportagem, Peter Tatchell, tudo não passa de estratégia imperialista a fim de afirmar sua política coercitivo-expansionista a nível global: “Os drones servem ao mesmo propósito das tropas terrestres: são nada mais que uma maneira diferente de alcançar o mesmo objetivo militar”.
Outros diversos documentos têm revelado o reconhecimento interno, por parte da CIA e do Pentágono, de que não existe nenhuma preocupação, ao contrário do discurso público, em se capturar supostos terroristas mas que a “política” tem sido matar acima de tudo. “A campanha de drones neste momento, realmente, visa somente matar. Quando se ouve a frase ‘capturar’ é, na verdade, termo mal usado”, afirmou ao sítio The Intercept o tenente-general Michael Flynn, ex-diretor da Agência de Inteligência de Defesa (DIA, na sigla em inglês). Há inúmeros relatos oficiais sigilosos em relação ao fracasso dos drones em atacar combatentes inimigos. Publicamente, nas poucas vezes que se pronunciam sobre o assunto os funcionários do regime dos Estados Unidos insistem em classificar praticamente todos os civis atingidos de ligação a terroristas, invariavelmente se tivessem idade militar, e de desmentir evidências que apontam que locais atingidos nada tinham a ver com práticas de terror. Nas raras vezes que civis assassinados acabam reconhecidos, quando se torna impossível negá-los acabam considerados “efeito colateral” dos “cirúrgicos e precisos” drones. Para Medea, trata-se de postura altamente cínica e criminosa do regime norte-americano: “É criminoso e insensível simplesmente ignorar o assassinato de pessoas inocentes como ‘danos colaterais’, como se suas vidas não fossem importantes. Os Estados Unidos são tão poderosos, que podem permanecer impunes diante de um comportamento tão arrogante”.
Se com Barack Obama, através da “lista da morte” e da ampliação da guerra secreta para mais zonas de batalha não declaradas os ataques com drones já tinham sido capazes de superar a quantidade e a intensidade do terror do antecessor Bush, nos poucos meses de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos a situação já se agravou, e tende a piorar. “Por mais odioso que fosse o método da guerra com drones de Obama, é voz moderada em comparação a Trump”, avalia para esta reportagem o historiador e escritor norte-americano Peter Kuznick, diretor do Instituto de Estudos Nucleares da Universidade Americana da capital estadunidense de Washington. Desde que Trump chegou à presidência em 20 de janeiro de 2017, proporcionalmente o número de ataques e vítimas civis aumentou vertiginosamente: o novo ocupante da Casa Branca tem dado carta branca aos militares e à CIA, limitada pela administração anterior, para que decidam sobre sua utilização afrouxando as regras de Obama que visava – teoricamente – proteger civis. “Como Obama, ele quer evitar as baixas norte-americanas. Mas ao contrário de Obama, Trump parece ter pouca preocupação com civis. O uso generalizado de drones por Obama legitima o uso ainda maior e menos cauteloso de Trump, precedente muito perigoso”, avalia Kuznick.
Tecnologia focada na vigilância indiscriminada e na morte por controle remoto que poderia ser altamente benéfica à humanidade, servindo apenas para poupar vida militares estadunidenses enquanto, fora das fronteiras dos Estados Unidos, menosprezam vidas alheias tratando-se da exacerbação do poder do Estado sobre a vida e a morte – sobre toda e qualquer vida que o regime de Washington considere, através de processos secretos sem acusação nem julgamento, merecedores de vigilância e execução. Lisa denunciou, em National Bird de que, em apenas dois anos em que serviu como sargenta técnica, o programa drones foi capaz de espionar e identificar nada menos que 121 mil pessoas. “Como alguém pode não achar isso perturbador?”.
Os Estados Unidos iniciaram a utilização de drones em 1995, sobrevoando os céus da Bósnia como parte da intervenção da OTAN no país báltico. Naquela época, os veículos aéreos não tripulados eram usados exclusivamente para o reconhecimento da região. Em outubro de 2001, como resposta aos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o primeiro míssil Hellfire foi instalado com sucesso em um drone. Em 4 de fevereiro de 2002, a CIA executou alguns dias de ataque com Hellfire na província afegã de Paktia, nas proximidades da cidade de Khost, cujo alvo alegado era Osama bin Laden: após os ataques, jornalistas no local juntaram materiais que comprovaram que os mortos eram civis, juntando sucata metálica. Este fato marcou o que seria a criminosa guerra de drones de Bush.
O primeiro drone utilizado fora de zona de guerra declarada ocorreu em 5 de novembro de 2002 no Iêmen, quando a CIA alegou que seis “suspeitos” membros da Al-Qaeda haviam sido mortos. Depois disso, fora de Iraque e Afeganistão, zonas de guerra declaradas, Bush limitou-se a atacar com drones o território paquistanês (zona de guerra não declarada), quando o programa era bem menor que em relação a Obama, quem ampliou o uso para a Somália (fora da zona de guerra), para a Síria (zona de guerra), e intensificou o uso em Iêmen e Iraque. Alvo de Alto Valor é um termo importante entre operadores de drones, referindo-se a militantes inimigos. Porém, em National Bird outro denunciante, um ex-analista de inteligência cujo nome é citado apenas como Daniel, afirmou: “Quando se trata de Alvo de Alto Valor, todas as missões consistem em buscar uma pessoa por vez, mas qualquer outro morto naquele ataque é considerado associado ao indivíduo alvo”. As denúncias de Daniel são confirmadas por slides dos operadores de drones, liberados ao sítio The Intercept por operador anônimo em cujos documentos oficiais pode ser lido que qualquer assassinado fora do alvo pretendido é classificado como EKIA, segundo o código dos controladores dos veículos não tripulados, iniciais de “inimigo morto em ação” em inglês.
Se para o historiador estadunidense é “obsceno” o regime de Washington apontar mortes civis como dano colateral dos veículos aéros não tripulados, a posição dos oficiais de seu país tem se tornado ainda mais preocupante ultimamente. “Os Estados Unidos encontraram uma solução ao problema do ‘efeito colateral’ alegando que todo homem com idade militar em uma zona de guerra é militante, merece execução. Na maioria desses ataques, os Estados Unidos não têm como saber se os alvos eram terroristas”, diz Kuznick.
Segundo dados do Bureau of Investigative Journalism (BIJ), conservadores porém os mais aproximados e confiáveis envolvendo drones, apenas em Afeganistão, Iêmen, Paquistão e Somália entre 2002 e 2017 mais de seis mil pessoas foram mortas pelos veículos não tripulados estadunidenses, entre elas um mínimo de 631 civis sem contar em outros países sobre os quais sobrevoam os “pássaros assassinos” de Tio Sam: Iraque, Líbia e Síria. Nos anos de Obama os ataques secretos com drones, isto é, aqueles realizados fora de campos de batalha declarados – Iêmen, Paquistão e Somália – foram dez vezes superiores em relação a Bush. Apenas no término do primeiro ano na Casa Branca, em janeiro de 2010 o prêmio Nobel da Paz já superava os ataques com veículos aéreos não tripulados em comparação aos oito anos de Bush e, se com este o ataque com veículos aéreos não tripulados no Iêmen limitou-se ao de novembro de 2002, Obama realizava até 2012 um ataque a cada seis dias sobre território iemenita. Durante os dois mandatos de Obama, um total de 563 ataques aéreos, em grande parte através de drones, deram-se contra Paquistão, Somália e Iêmen, frente aos 57 ataques de Bush. No entanto, a estimativa dos Estados Unidos sobre o número de civis mortos, como sempre ao longo destes anos, foi excessivamente subestimada: ficou entre 64 e 116.
É vasta a lista de crimes de guerra de Obama contra civis por drones. A sangrenta Operação Heymaker no nordeste do Afeganistão de 2011 a 2013, durante um período de menos de cinco meses, entre maio e setembro de 2012, apresentou “números” alarmantes: quase nove das dez pessoas que morreram em ataques aéreos não eram alvos pretendidos pelos norte-americanos, segundo documentos do Departamento de Defesa entregues anonimamente a The Intercept. Isso tudo é mais perturbador levando-se em conta a observação de Timo: “Inclusive os alvos pretendidos podem não ser legítimos”. Timo também observa que muitas vezes os ataques estadunidenses com veículos aéreos não tripulados são precisos em matar terroristas, mas não em poupar quem os acompanha, sobre o que vale destacar o ataque de 21 de maio de 2016 na província de Baluchistão, sudoeste paquistanês que serve de refúgio aos talibans , o qual matou em um táxi o líder taliban desde 2013, Mullah Akhtar Muhammad Mansour, e junto o motorista do veículo que apenas trabalhava e nada tinha a ver com atos de terror. Outro “detalhe” é que o governo paquistanês não apenas não havia autorizado o ataque norte-americano, como havia no país vizinho intensos protestos entre os paquistaneses pela guerra com drones de Washington: mais uma grave violação do direito internacional pelos Estados Unidos.
Em cinco meses na Casa Branca, Trump apresenta média de ataque com drones a cada 1,8 dia, e ao menos 101 mortos até o segundo mês de mandato segundo dados conservadores do BIJ. Em 16 de março, no povoado de al-Jina na Síria houve mais um ataque emblemático pela agressividade seguida de cinismo, quando ao menos 38 civis foram mortos em uma mesquita, entre eles ao menos cinco crianças, vítimas de dois bombardeios seguidos por drone – a chamada “torneira dupla”, cujo veículo disparou pela segunda vez quando sobreviventes tentavam sair dos escombros. O Pentágono, que jamais fizera investigação pessoal na região do ataque para reconhecimento limitando-se às vigilâncias remotamente controladas, negou que uma mesquita foi alvo de bombardeio contrariando relatos, fotos e vídeos autenticados por organismos sírios e pela Human Rights Watch. Recusando-se ainda a verificar o local pós-tragédia e ouvir testemunhas do ataque, o Departamento de Defesa norte-americano afirmou que nenhum civil foi morto dando o caso por encerrado, por “insuficiência de evidências”. Quanto às “torneiras duplas”, geralmente atingem, no segundo disparo, socorristas que deveriam atender vítimas de bombardeios, outro crime de guerra. O finlandês Timo Kivimäki, diretor de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de Bath na Inglaterra, vê com profunda preocupação a maior liberdade que Trump tem dado à CIA para atacar com drones, contrariando seu antecessor na Casa Branca: “O poder crescente da CIA é uma preocupação para todas as pessoas que vivem à sombra dos drones dos Estados Unidos”.
Em relação à vigilância por drone em substituição à presencial, Timo Kivimäki adverte também para esta reportagem: “Enquanto os Estados Unidos tentam evitar fatalidades norte-americanas reduzindo presença terrestre, compreenderão menos ainda a dinâmica da sociedade onde atuam, e menos capazes ainda de identificar quem é terrorista e quem não é”. Medea concorda, questionando Washington em sua sinceridade na “Guerra ao Terror”: “Se a causa for tão crítica para a segurança dos Estados Unidos, devemos estar dispostos a enviar soldados”. Lisa aponta no mesmo sentido ao observar que em determinadas questões, nada substitui a inteligência humana. Para a denunciante, a comunidade de inteligência dos Estados Unidos está perdida em meio à tecnologia: “Em vez de estudar diferentes culturas ou considerar nuances sociais e tradicionais, depende da tecnologia e da quantidade de dados, não de informações de qualidade prática. A capacidade de coleta e os dados coletados em si não significam nada mesmo com informações demais, se não houver entendimento cultural para saber o que se está procurando: seja qual for a tecnologia, é inútil neste sentido”.
Perguntado se drones são uma boa alternativa às tropas terrestres conforme alega Washington, Kuznick responde que a questão vai além disso, tratando-se de opção bélica entre guerra e diplomacia. “Há situações em que a diplomacia não funciona, mas os Estados Unidos têm sido muito rápidos em recorrer a meios militares para resolver todas as controvérsias e problemas”. Lisa aponta ao mesmo sentido quando questionada sobre a “eficiência” dos drones: “A ninguém é dada trégua e não se pode dizer que porque estou segurando uma criança não me sobrevenha um drone, ou que sou médico, e por isso não vão me atacar. Não era possível imaginar que se viveria assim, uma das razões pelas quais penso que as armas devem ser removidas dos drones”. Sobre o avanço no combate ao terror, Kuznick questiona: “Nestes 16 anos de guerra liderada pelos Estados Unidos, tem havido alguma melhora? Alguns afegãos e empreendedores da defesa norte-americana ficaram ricos, mas a maioria dos afegãos tem se tornado miserável”. O pesquisador demonstra a disposição dos Estados Unidos em encontrar pretextos para alimentar sua indústria bélica e a expansão de seu poder a nível global em detrimento da paz, lembrando a relutância de Washington em ter Bin Laden entregue pelos talibans nas semanas subsequentes aos ataques do 11 de Setembro, e assim levá-lo a uma corte – o então presidente Bush preferiu a invasão. “Desde então, o Afeganistão tem sido um parque infantil para a guerra com drones dos Estados Unidos”.
A aprovação de um ataque com drone passa por mais de duas dúzias de funcionários do regime norte-americano, até chegar ao presidente segundo um dos slides obtidos por The Intercept: se neste percurso houver uma oposição que seja, a ofensiva é suspensa; se aprovada, os operadores têm até 60 dias para realizar o ataque. Se o prazo de dois meses for expirado sem a execução todo o processo deve ser refeito, o que também pode explicar o afoite dos militares responsáveis pela mais nova tecnologia da guerra, em atingir os alvos. Lisa adverte que diante do atual estágio onipresente de vigilância e da capacidade de atacar através de controle remoto, algo sem precedentes, “a supervisão e o controle, global e local, são necessários para se manter este imenso poder sob controle. Pode-se levar anos para que o público descubra as falhas que custam milhares de vidas inocentes, e a capacidade em se corrigir disparidades pode demorar décadas”. Consultada pela reportagem, a jurista norte-americana pró-direitos humanos, Azadeh Shahshahani, diretora do Projeto South que atua em combate ao racismo e injustiças sociais além de diretora do Projeto de Segurança Nacional e dos Direitos dos Imigrantes da American Civil Liberties Union (ACLU), Organização Não-Governamental que desde o princípio condena duramente o programa de drones do regime norte-americano (assim como os mais diversos organismos de direitos humano), observa que “de acordo a lei humanitária internacional, os drones só podem ser usados como bombas em um conflito armado ativo e, mesmo assim, com certas restrições incluindo necessidade militar, humanitária, distinção e proporcionalidade. Somente combatentes ou civis que participam diretamente das batalhas podem ser alvo. A focalização de outros civis é proibida, e pode constituir um crime de guerra”.
Kuznick avalia que os ataques, além de moralmente censuráveis e na maioria das vezes ilegais, são “contraproducentes, produzem mais terroristas que matam”. Kivimäki concorda: “A influência externa dá aos criminosos, terroristas e ditadores, legitimidade nacionalista à violência justificada como ‘proteção contra os invasores’”. O especialista finlandês enfatiza que tal fato não legitima ataques contra inocentes como resposta. “Mas é certo que as partes em conflito tendem a buscar legitimidade à própria violência, diante da violência que seus oponentes impuseram”, acrescenta o docente, responsabilizando os norte-americanos pelo acirramento do extremismo religioso e do ódio contra o imperialismo norte-americano. “O uso de drones alimentou essa violência, não a tratou”. Kuznick considera ainda que os Estados Unidos não utilizam drones em prol da paz e da vida, mas como “máquinas de matar”: “Como no caso da maioria das inovações científicas e tecnológicas, os drones podem ser usados para guerra ou paz, enriquecer a vida ou destruí-la enquanto representam não apenas engrenagem da morte na guerra, como também mecanismo de vigilância que ameaça a privacidade”. Lisa pensa da mesma maneira, mostrando-se preocupada com o futuro da humanidade ao prever que a inteligência artificial substituirá a humana, em breve desnecessária. “Quando isso acontecer, como o mundo ocidental reagirá? Escolheremos o controle global? É ilógico acreditar que o uso de qualquer tecnologia militar não se voltará contra nós. Dizer essa verdade, talvez, faça com que outros se engajem diante do que o futuro tem-nos reservado se deixarmos as coisas como estão. Talvez reconhecendo que as armas podem se proliferar além do controle, as coisas mudem”.
Azadeh também enfatiza a importância que a tecnologia dos drones poderia exercer em favor da vida, porém aponta que a questão não está sendo tratada com a mesma importância pelo regime de Washington, quando envolve seu uso bélico e de ferimento às liberdades civis de vigilância em massa. “Seu uso ainda precisa ser regulado nos Estados Unidos, para garantir que sejam utilizados por exemplo na vigilância do agronegócio e na verificação de possíveis envolvimentos em abuso animal, por agências reguladoras”. No contexto das Relações Internacionais, Timo Kivimäki observa preocupado um cenário de utilização de drones sem a devida regulação. Durante tanto tempo, os Estados Unidos ‘monopolizaram’ a tecnologia de drone em conflitos globais. Isso os deixou relutantes em negociar sobre a regulamentação de Hoje, quase cem países fazem uso de drones para aumentar a defesa, e o mundo com regulação limitada de como os drones podem ser utilizados, é um mundo perigoso”. Kuznick adverte no mesmo sentido, mostrando-se altamente preocupado com o uso internacionalmente desenfreado dos drones: “Os Estados Unidos, Israel e Grã-Bretanha estão se armando para usá-los em “zonas de guerra”, mas o que é feito para impedir que os russos os usem para matar os chechenos, ou os chineses para matar os uigures?”. Para o pesquisador da Universidade Americana, a obsessão de Washington pela guerra está levando o mundo a um caos béico sem precedentes. “A visão dos Estados Unidos é muito estreita enquanto seus líderes pensam que manterão o monopólio deste tipo de guerra. China, Rússia e Irã também possuem sistemas muito avançados de drones predadores. A face da guerra moderna é assustadora, e está prestes a piorar. Atenção”, completa Kuznick.
Perguntada sobre os interesses por trás do uso ilimitado e ilegal da mais nova tecnologia da guerra, Lisa garante: “Há muito dinheiro a ser ganho. Há uma conveniência política quando um drone é enviado em vez do filho ou da filha de alguém. Há tantas respostas possíveis para esta questão… muitas estão bem acima do meu conhecimento. O comércio global de armas é muito poderoso. O presidente Dwight D. Eisenhower (1953-1961) advertiu os cidadãos dos Estados Unidos sobre o ‘complexo militar-industrial’ em seu discurso de despedida. Talvez já estejamos onde ele avisou que algum dia estaríamos”.
O negócio dos veículos aéreos não tripulados é altamente lucrativo para as grandes corporações. Segundo o National Priorities Project do estado norte-americano de Massachussets, no ano fiscal de 2016 foram gastos 116.063 dólares por hora pelo regime de Washington para o programa de drones dos Estados Unidos, que inclui o General Atomics MQ-9 Reaper e o General Atomics MQ-1 Predator.
Para o ano fiscal de 2017, segundo o Center for the Study of Drone da Bard College de Washington, dos cerca de 600 bilhões do total gasto em defesa o Departamento de Defesa estadunisense alocou cerca de 4,6 bilhões de dólares para a guerra através das aeronaves não tripuladas, capazes não apenas de espionar mas também de transportar mísseis teleguiados.
As maiores fabricantes da tecnologia de veículos aéreos não tripulados, tanto ocidentais como não-ocidentais, são as norte-americanas The Boeing Company, General Atomics Aeronautical Systems Inc., Lockheed Martin, Northrop Grumman, AeroVironment Inc. e E Textron Inc., a norueguesa Prox Dynamics AS, a sul-africana Denel Dynamics, a chinesa SAIC e a israelense Israel Aerospace Industries.
Cada Predator produzido pela General Atomics, tão elogiado por Barack Obama pela capacidade de bombardear, custa 4,5 milhões de dólares à Força Aérea dos Estados Unidos. Já o míssil Hellfire que vai acoplado ao Predator, fabricado pela Lockheed Martin, custa 110 mil dólares cada um.
Os cerca de 400 ataques com drones ao Paquistão que mataram entre 2 mil e 3 mil pessoas, custaram de 33 milhões 44 milhões de dólares de acordo com informações de Robotenomics (US Military To Spend $23.9 Billion on Drones and Unmanned Systems) e Mother Jones (Drones: Everything You Ever Wanted to Know But Were Always Afraid to Ask).
Quanto ao alerta de Eisenhower mencionado por Lisa, Ike dizia-se decepcionado em uma época que os gastos militares do Estados Unidos já superavam o lucro líquido de todas as corporações do país, apontava que deveria haver desarmamento contínuo e mútuo entre as nações, e que se não houvesse recuo do complexo militar-industrial norte-americano a democracia e a liberdade locais, e a própria segurança internacional correriam sérios riscos. Pouco efeito surtiram as advertências de Ike: segundo último levantamento de Pew Research de maio de 2015, 58% da sociedade norte-americana aprova a guerra com drones mesmo consciente do assassinato indiscriminado de civis, já que a nova tecnologia da guerra poupa a vida dos militares estadunidenses.
Edu Montesanti