Discursos da guerra e dualidade de pensamento. O exemplo da Síria.
Para além da propaganda.
Depois dos atentados de 11 de setembro nós estivemos assistindo a uma transformação da maneira na qual a mídia, como coletivo, rende conta e reproduz os acontecimentos da atualidade. A mídia está nos encerrando no irreal. Ela baseia uma verdade não sobre a coerência dos fatos, ou do exposto, mas sim sobre uma qualidade de poder levantar surpresa e susto. Isso faz com que o sujeito submetido a isso fique petrificado, não conseguindo mais estabelecer uma relação, ou ligação, com a realidade.
A mídia está nos mentindo, mas ao mesmo tempo a mostrar que nos está mentindo. Não se trataria aqui de modificar a percepção dos fatos para obter a nossa adesão, mas de nos encerrar na total potência do poder. A exibição dessa destruição da razão, se apoia aqui em imagens que são não reais mas imaginadas, as quais tem como função a substituição dos fatos por algo não real. A “informação” não é mais usada como capacidade de perceber e representar uma coisa real, mas como a necessidade de experimentar, e pôr a prova, talvez então principalmente de pôr a prova através dessa operação de mudar os fatos pelo imaginado, ou desejado.
De Bin Laden à Merah, passando pelo ”tirano” Bashar al-Assad, o discurso da mídia se tornou numa permanente produção de fetiches, dando ordens para uma entrega total sobre o que ”dá o ton”, ou seja, ao poder. Isso não tem, como a propaganda o tem, o objetivo de convencer. O discurso apresentado dá simplesmente uma ordem ao sujeito para que dê carne e osso a imagem de uma ”guerra de civilizações”. O dispositivo discursivo da ”guerra do bem contra o mal” actualiza o processo orweliano da dualidade do pensamento. Essa dualidade do pensamento, do qual mais será dito abaixo, deverá então vir a ser a nova realidade, que des-estrutura o conjunto da nossa existência e da nossa vida quotidiana, assim como as suas ligações com a política global.
Esse saber-como-fazer [know-how ou savoir-faire] tornou-se omnipresente, existindo por tudo, vê-se isso claramente no que se relaciona a guerra da Síria. O procedimento consiste em anular a idéia expressa, ao mesmo tempo em que a mesma é pronunciada, mas ao mesmo tempo também mantendo o que foi anteriormente dito, ou dado a subentender. [Isso, em termos psicológicos, seria o equivalente a dizer ”eu te amo” conquanto retrocedendo o corpo num ato de repulsão]. Aqui o indivíduo deverá ter, ou adquirir, a capacidade de aceitar elementos que se opõem, sem pôr em questão a contradição expressa. A linguagem é assim reduzida a comunicação do que é dito, não conseguindo mais realizar sua função de representação. Isso significaria também uma des-construção da capacidade de simbolizar, impedindo toda e qualquer proteção em relação a realidade, ao mesmo tempo em que nos livra da mesma.
Anunciar ao mesmo tempo uma coisa e seu contrário
Na apresentação do conflito da Síria, o uso da dualidade do pensamento faz-se de maneira muito extensiva. Anuncia-se ao mesmo tempo uma coisa, e seu contrário, produzindo uma desintegração automática da consciência. Aqui já não é mais possível o perceber, e o analisar da realidade. Sendo incapazes de nos distanciar das nossas emoções, não podemos fazer mais do que, mesmo se pondo a realidade a prova, a nos submeter a mesma.
Os em oposição ao regime de Bashar al-Assad são denominados como “combatentes da liberdade” ao mesmo tempo em que são chamados de fundamentalistas islâmicos, inimigos da democracia. Usa-se esse mesmo procedimento em relação ao uso de armas químicas, pelos beligerantes. A mídia, sem provas, apresenta uma certeza absoluta quanto a culpa do regime sírio, apesar de que mencionem o uso de tais armas pelos “rebeldes.” A mídia substituiu as declarações da magistrada Carla Del Ponte, membro da comissão de pesquisa independente da ONU sobre a violência na Síria, a qual declarou, em 5 de maio de 2013, para a televisão suíça que: “de acordo com os testemunhos que recolhemos os rebeldes utilizaram armas químicas, usando gás sarim”. Essa magistrada, que também é a ex-procuradora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, poderá dificilmente ser caracterizada como complacente ao regime de Bashar al-Assad. ”Nossas pesquisas deverão ainda ser aprofundadas, verificadas e confirmadas através de novos testemunhos, mas de acordo com o que pudemos estabelecer até esse momento são os em oposição ao regime que utilizaram o gás sarim [1]” ela acrescentou.
Quanto a Casa Branca, essa não quis saber desses testemunhos, exprimindo uma posição inversa. Dessa maneira, ao que diz respeito ao massacre de Ghouta, ela difundiu um comunicado explicando que haveriam “muitas poucas dúvidas” do uso de armas químicas pelo governo da Síria, contra a oposição. O comunicado acrescentava que a aceitação síria para deixar que os inspectores da ONU entrassem na zona em questão, tinha vindo “muito tarde para ter credibilidade”. [Isso então sendo de quando o governo sírio já tinha dito que tratava-se de uma zona de combate, e que como governo tinham a obrigação de proteger os inspectores internacionais, nessa situação.]
Redução do qualitativo ao quantitativo.
Quanto ao uso em 21 de agosto de 2013 de armas químicas em subúrbios de Damasco, o secretário de estado dos Estados Unidos, o Sr. Kerry, reafirmou a “forte certeza” dos Estados Unidos quanto a responsabilidade do regime sírio. Um relatório do serviço de reconhecimento americano, difundido pela Casa Branca, dizendo basear-se em ”múltiplas” fontes, também afirmou que o governo sírio tinha recorrido a gases neurotóxicos nesse ataque, onde seria “altamente improvável” que esse tivesse sido cometido pelos rebeldes. [2]
Nessas condições o indivíduo perde a sua capacidade de diferenciar a realidade através da linguagem. O qualitativo, a certeza, é reduzida ao quantitativo, aos “diferentes graus de certeza” anteriormente exprimidas por Obama, até a “forte certeza” pronunciada por J. Kerry. O se ter “muito poucas dúvidas”, quanto a culpabilidade do regime sírio, espelha a responsabilidade “altamente improvável” atribuídas a oposição. A qualidade fica assim restringida a uma diferença em quantidade. A qualidade, a que é, torna-se, ao mesmo tempo, o que não é, ou pelo menos, o que não pode ser, porque ela exprime mais uma certeza, mais um grau ou, uma certa quantidade de certeza, ou de duvida. Se produz assim uma equivalência entre esses termos opostos, certeza e dúvida. A diferença qualitativa [vida vs morte por exemplo] se reduz a uma distância entre quantidades [pouco morto, muito morto, absolutamente morto, para deixar o caso bem explícito]. Não há aqui então nenhuma outra qualidade, do que a da medida quantitativa.
Essa redução do qualitativo ao quantitativo, de muitas maneiras, já invadiu nossa vida quotidiana. Não há mais pobres, mas “menos favorizados”. Da mesma maneira que já não encontramos inválidos, mas “menos válidos”. Os trabalhos não qualificados são atualmente aureolados por uma denominação operacional negando a des-qualificação. Dessa maneira uma mulher trabalhadora se torna numa ”técnica de área”, a denominação caixa some em benefício da denominação “a recepcionista da caixa” enquanto o trabalhador é promovido simplesmente com a nova denominação, “operador de produção”.
O poder separador da linguagem está aqui sendo destruido. As palavras estão sendo transformadas em locuções verbais, as quais estão construindo um mundo homogeneizado. Nós vivemos num universo no qual todos são favorizados. Já não há mais diferenças qualitativas entre as exitências, mas sómente quantitativas. A visão de um mundo de uma perfeita homogeneização, onde não existiria mais do que iguais, que já não se diferenciam de maneira outra senão a quantitativa, já tinha sido antecipada por Georges Orwell no seu ”La ferme des animaux : touts sont des égaux, mais certains le seraient plus que d´autres”. [3] Aqui traduzido como ”A quinta dos animais : todos são iguais, mas alguns os seriam mais do que outros.”
Certeza absoluta em falta de provas.
As palavras, que qualificam e diferenciam as coisas, foram substituidas por uma imagem, pelo que é tudo, em não sendo nada. Ao contrário de uma palavra que se refere a um objeto, o grau de certeza não leva a nada outro que ao sentimento de quem fala. Essas expressões verbais não tem como objetivo o designar as coisas externas, mas de colocar a pessoa que recebe a mensagem no ponto de vista daquele que fala, fechando-a numa torção dos sentidos, efetuada por essa manobra.
A certeza exprimida pode estar separada dos fatos, e se apresenta como puramente subjetiva. Essa certeza não se relaciona a uma observação, mas faz referência a um afeto, o qual então se apresenta como objetivo graças a uma operacionalização de quantificação.
A certeza das autoridades estadunidenses, e aqui no caso também as das francesas, se especifica pelo fato de que ela é construida sobre dados equívocos, invocando provas de responsabilidade do regime sírio, se bem que eles aceitem, em algum nível, a impossibilidade de saber quem efetuou os ataques, e como foi que as armas químicas foram utilizadas, mas certezas eles as tem. Não é então possível de se construir uma certeza objetiva, porque as observações dos fatos já foram neutralizadas, deixando lugar só para a surpresa e susto do indivíduo a isso submetido. A certeza exprimida não mais separa o que é verdadeiro do que é falso, porque a capacidade racional de julgamento do indivíduo foi suspensa, pela necessidade desse ter que aceitar simultaneamente duas proposições que se excluem.
Tem-se aqui que a certeza subjetiva e objetiva ficaram, através da linguagem, indiferenciadas, não se diferenciando mais uma da outra. Não se trata aqui de ter que acreditar no que foi dito, mas de acreditar na autoridade de quem fala, o que quer que seja que diga. As declarações dos presidentes Obama e Hollande se dão imediatamente como certezas absolutas, isso é o mesmo que dizer que elas ocupam o lugar que Descartes deu a Deus – comme principe de garantie de la vérité objective du vécu subjectif – aqui traduzido “como o princípio de garantia da verdade objetiva do vivido subjetivamente”… [4] . A questão de se passar para a etapa da verificação objetiva, através do julgamento da existência, não se põe, na medida em que a certeza anunciada está liberada de todo e qualquer restrição espacial e temporal. Essa certeza é posta com ausência de limites, numa ausência do que a psicoanálise denomina de “Tiers”, no sentido (do lugar) “Do Outro”. Tiers podendo talvez ser entendido também como de terceiros, de outros. [5]
Eliminação do lugar do “Outro”
A certeza absoluta, se apresenta em tudo, instalada na negação do real, do que se nos escapa. Ela não reconhece a perda. Constituir-se em nós, já não é mais possível, porque ela não pode ser formada pelo que falta. A mónada [termo da filosofia de Leibnitz, que vê o espírito como irremediavelmente só e incomunicável] não tem falta de nada, porque está ligada a potência do estado. Os fetiches fabricados pelas “informações” tocam e destroem o fundo do real, ocupam o lugar da falta, e operam em negação “do outro”.
A certeza absoluta se opõe a constituição de uma ordem simbólica integrante do “outro” [6], no sentido do lugar da linguagem. A função da linguagem é a de simbolizar o real. A palavra não é real em si mesma, mas o meio pelo qual o real pode ser apresentado, a palavra é assim um símbolo do real. Jacques Lacan exprime essa necessidade pelo aforismo “Il faut que la chose se perde pour être représentée” [7] Aqui traduzido como “É necessário que a coisa se perca para que possa ser representada”
De maneira contrária, a certeza absoluta, sem provas, gruda as palavras as coisas, fazendo do real e da palavra uma só coisa, não se apercebendo então de suas relações básicas, ou seja, da palavra como um símbolo para o real. Na ausência ou falta “do outro” ela impede qualquer articulação do real através do simbolismo. Essa falta do devido lugar do outro, ou seja do lugar da palavra como símbolo do real, leva a formação de uma psicose social, na qual o dito pelo poder, se transforma na realidade. Essa falta de ligação ou conexão com a realidade, através das palavras, permite também o aparecimento de uma estrutura perversa, que destrói a função das palavras, impedindo também que se denomine o real, ou seja que se reconheça o real, separando-o da psicose…
Essa manobra, feita então principalmente por intermédio da mídia, nos encerra assim numa psicose [de carácter coletivo]. Os discursos das autoridades francesas e americanas levantam e aumentam uma negação perversa. Isso constitue um “golpe, de força, contra a linguagem. “golpe de força porque [ess]a negação se situa no nível do fundamento lógico da linguagem. [8]” O desmentir da realidade se efetua por um fazer da linguagem uma coisa ou objeto, não como em verdade ela é, como um símbolo de uma coisa ou objeto. Esse cínico golpe de força consiste em “perverter pelo que se expressa pela lei, fazendo da linguagem um discurso razoável, do que é desarrazoado, [9]” tal por exemplo como o falar da guerra humanitária, ou da luta contra o terrorismo.
As legislações antiterroristas apresentam-se como ações racionais, mas estabelecem e tiram proveito do direito da fabricação de imagens, direito esse que não deveriam ter, dado a função básica da linguagem como símbolo do real. O Direito dos Estados Unidos é particularmente rico em construções imaginárias, tal como “lobo solitário” -um terrorista isolado incorporando-se numa esfera de influência internacional – “o inimigo combatente”, ou o “ilegal beligerante” os quais tem sua existência dado que assim são denominados como tal pelo presidente dos Estados Unidos. O combatente inimigo, assim como o ilegal beligerante, talvez um cidadão americano, pode nunca jamais ter estado em qualquer tipo de campo de batalha, de onde uma “ação guerreira” poderia se resumir a um ato de protesto contra um compromisso militar. O afastar-se do dito pelo poder, já não parece mais possível. Na mesma, toda a proteção contra essa ameaça foram retiradas. O real se manifesta agora sem coberturas, sem véus, e não mais através da função da palavra de simbolizar o real, e isso pode então nos petrificar.
A supressão do Outro reduz o indivíduo a uma monada [o conceito filosófico de Leibnitz, acima mencionado] não tendo mais nenhum outro que a potência estatal, o que permite ao poder, como se viu no que diz respeito ao discurso sobre a Síria, de fabricar uma nova realidade. As provas da culpabilidade do regime sírio exitem, porque ela, a potência estatal, assim o diz.
Uma “perturbadora não-familiaridade”
A ausência do “Tiers”, do outro, nos instala numa transparência, para além da linguagem. Essa ausência suprime a articulação entre o interior e o exterior. A expressão do acumulado e concentrado poder do presidente americano, a sua vontade, a sua libertação dos limites da linguagem, e de toda e qualquer ordem jurídica, nos faz deparar com a nossa condição, e sua redução a “vida nua”. Produz-se aqui então “uma particular variedade de coisas e momentos assustadores” o que Freud denominava como Unheimliche [10], termo sem equivalente no francês [de onde vem esse original] traduzido no francês então tanto por ”inquiétante étrangeté” como por ”inquiétante familiarité”. Ao pé da letra, essa expressão alemã, unheimlich, usada por Freud, que tinha o alemão como língua em português seria medonho, pavoroso, lúgubre e ou sinistro, o que faz com que a expressão “perturbadora não-familiaridade” possa parecer apropriada em português, sendo que tem-se então também a outra alternativa “perturbadora familiaridade”, como no original francês
Ela, essa perturbadora não-familiaridade, essa unheimlichkeit, seria, de acordo com a definição de Schelling, qualquer coisa que tivesse estado escondida e que agora reaparecia. As coisas do mundo aparecem agora, depois de terem estado por detrás das palavras, na sua presença bruta, desligadas das palavras como símbolos. Lá onde o indivíduo se crê em sua própria companhia, ele poderá se sentir, de um só golpe, escondido de si mesmo, tornando-se estrangeiro para si mesmo. A interioridade da nossa condição, o nosso nada, fica exorbitante e muito grande, de quando jogados ao exterior, o qual nos aparece agora sobre a forma de uma manifestação de desfrute do total poder do executivo estadunidense. Tem-se que uma inquietude não-familiar, se nos apresenta vindo do que nos é mais familiar. A nossa intimidade é suprimida e substituída por essa perturbadora não-familiaridade.
Freud evocou uma dissociação do ego, do eu. Esse ego poderá afastar-se, esconder-se, e poderá então deixar de espelhar o Real. Isso é sentido como uma ameaça que petrifica. Freud pensa na formação de um Ego, um eu, como que estrangeiro, que pode se transformar numa consciência moral, e tratar as outras partes (da personalidade do indivíduo) como um objeto. Trata-se então, para Freud, de um Super-ego, de uma internalização, ou incorporação da autoridade parental. [11]
Esse mecanismo inicia um retorno ao arcaico indesejado, aquele que tem por objetivo o esconder o perigo, e a aflição, originados na criança de peito. A inquietante não-familiaridade, produzida pelo discurso de Obama, é do mesmo tipo. Ele instrumentaliza o que se passou no Iraque, tentando impedir toda a recordação de nossa impotência. Isso da mesma maneira como se instrumentaliza também o conforto do “retorno permanente a si mesmo” ameaçado agora com o sentimento da inquietante não-familiaridade. O procedimento repetitivo, explicado pelo mecanismo freudiano, se apresentaria também aqui, como um processo inexorável, como um encontro com um poder que o indivíduo sente que não pode confrontar.
Jacque Lacan confirmou essa interpretação. Retornando ao trabalho de Freud sobre a inquietude não-familiar, ele mostra que a angústia surge quando o sujeito é confrontado com uma “falta da falta” ou carência da carência” [”manque du manque” no original] quer dizer, a uma des-associação de si mesmo [como se a pessoa fosse estranha a si mesma] que a invade ao ponto de destruir nela toda a capacidade de desejo. [12]
Realmente, as duas interpretações da palavra alemã unheimlich em francês, a primeira ressaltando o estranho, desconhecido ou estrangeiro, e a segunda ressaltando o seu carácter familiar, fazem com que se possa caracterizar um aspecto dessa específica angústia. Vê-se que é possível se aproximar dela graças a uma noção de transparência, onde o interior e o exterior se confundem. O indivíduo se sente estranho a si mesmo por ver sua impotência, por ter sua carência interna exibida, também no exterior de si mesmo, e pela colonização do seu íntimo pela humilhação, tornada familiar pela potência do ”outro”.
Negação e divisão de si mesmo
A dissociação é uma tentativa arcaica de defesa frente a uma situação de potência, a qual a pessoa não consegue enfrentar. Essa desintegração do Ego, do eu, permite um retorno ao “já visto”, a uma regressão ao já visto, e vivido então. Isso faz também com que possamos nos olhar como de quando muito crianças, como aquele que não falava, com todos os sentimentos de então, provocando em nosso ser um sentimento de inquietude, familiar ou não-familiar.
Frente ao imperativo de ter que crer na responsabilidade de Bashar al Assad, o indivíduo terá como que suspender as informações contrárias, e as tratar como se elas não existissem. Nessa situação o indivíduo começa por negar tudo o que possa realçar a diferença, entrando então, em termos emocionais, numa posição regressiva, que em termos analíticos corresponderia a uma volta a total união com a mãe, no estado anterior ao da linguagem, o de antes da entrada, emocional, da função do pai.
O negar a contradição que existe entre uma coisa e seu contrário – como no caso da responsabilidade do governo sírio e a utilização de armas químicas pelos rebeldes – é um ato mental de se recusar a aceitar a realidade da sua própria percepção, negando-a, porque essa fica sendo entendida, pelo processo mental do indivíduo, como perigosa, uma vez que essa compreensão da situação real, tal como ela é, já o estaria colocando em situação de afronta contra a potência do poder estabelecido. Para conter a angústia produzida por esse fato desconcertante, assustador, e inquietante, o indivíduo é obrigado a justapor dois raciocínios contrários, e paralelos. O indivíduo passa a ter então duas visões incompatíveis, e nega toda e qualquer relação entre elas. O negar da situação de oposição entre elas acaba com toda a situação de conflito, porque essa negação permite que essas duas afirmações opostas, que se excluem então, possam coexistir em mim, em justaposição, sem que influenciem uma a outra. Essa raciocínio se apoia no que em termos psicoanalíticos se denomina como a dissociação ou “divisão do ego, do eu”
Esse tipo de divisão ou compartimentalização – de “clivage” no original francês – dá a possibilidade de que a pessoa viva nesses dois registros, que ela põe então lado a lado, tendo de um lado um “saber” – no caso da Síria o uso de gás sarim pelos rebeldes – e do outro lado, um “saber-fazer” – no caso o saber se esquivar de uma confrontação – através de uma suspensão de julgamento lógico da informação. Para o indivíduo trata-se de impedir toda e qualquer luta, toda e qualquer simbolização, para que possa então gozar de todo o prazer vindo da total potência do poder. Entretanto, na ausência da percepção de uma falta, no que se nos afirma, já nos encontramos numa situação de conflito, e num processo de anulação de todo e qualquer julgamento [julgamento esse que seria então um processo natural, espontâneo, lógico, e cognitivo, da mente humana, o qual então estamos tentando negar e anular, o que traz naturalmente consequências, no caso emocionais, como as apresentadas acima].
Esse procedimento foi também apresentado por Orwell na sua definição da “duplicidade do pensamento”, double pensée no original. Essa duplicidade consiste em “manter simultaneamente duas opiniões que se anulam, de quando se sabe que são contraditórias, acreditando nas duas”, estando ainda capaz de esquecer uma, de quando a ordem do super-ego se manifesta, super-ego sendo, como apresentado acima, a autoridade internalizada, ou incorporada, pelo indivíduo. Depois é conveniente esquecer o que se está esquecendo, ou seja de “persuadir conscientemente o sub-consciente, para que esse se mantenha inconsciente do ato de hipnose que foi perpetrado. [14]”
Essa situaçao de divisão mental volta sempre nos discursos da guerra da Síria. As coisas são regularmente afirmadas, ao mesmo tempo em que negadas, sem que nenhuma relação seja estabelecida entre as diferentes afirmações. Contrariamente as declarações de Carla Del Ponte, Washington chega “com os seus diferentes graus de certeza” a conclusão de que as forças governamentais sírias fizeram uso de gás sarim contra seu próprio povo. Entretanto, tem-se que Barack Obama, no mesmo tempo, declarava que os Estados Unidos não “sabiam como [essas armas] tinham sido utilizadas, quando elas foram utilizadas, nem quem as tinham utilizado [15]”. Essa operação coloca o sujeito numa divisão mental, numa incapacidade de reagir aos próprios sentidos, frente ao que se diz, e ao que se mostra, ou entende. Não se pode ter uma certeza que se revindique numa ausência do saber.
A conversão da lógica na construção da linguagem torna-se numa manifestação do poder do executivo estadunidense. Ele exibe uma capacidade de se libertar de toda e qualquer organização da linguagem, o que significa então de toda a ordem simbólica. O absurdo reivindicado nas declarações apresenta-se como um golpe brutal contra os fundamentos lógicos da linguagem. Isso tem um efeito de petrificação sobre as pessoas e as fecha numa psicose.
Jean-Claude Paye, Tülay Umay
Artigo original em francês:
Discours de la guerre et double pensée. L’exemple de la Syrie. 29 de Junho de 2014
Traduzido por Anna Malm, artigospoliticos.wordpress.com, para Mondialisation.ca
[1] « Les rebelles syriens ont utilisé du gaz sarin, selon Carla Del Ponte », Le Monde.fr avec Reuters | 06.05.2013, http://www.lemonde.fr/proche-orient/article/2013/05/06/les-rebelles-syriens-ont-utilise-du-gaz-sarin-selon-carla-del-ponte_3171289_3218.html
[2] « Syrie : les Etats-Unis ont la “forte certitude” que Damas a eu recours à des armes chimiques », Le Monde.fr | 30.08.2013,http://www.lemonde.fr/proche-orient/article/2013/08/30/syrie-les-etats-unis-ont-la-forte-certitude-que-damas-a-eu-recours-a-des-armes-chimiques_3469202_3218.html
[3] « Tous les animaux sont égaux, mais certains animaux le sont plus que d’autres », Georges Orwell, La ferme des animaux. Gallimard Folio 1984.
[4] Charles-Éric de Saint Germain, L’avènement de la vérité Hegel, Kierkegaard, Heidegger,,L’Harmattan 2003, p. 37.
[5] Dominique Temple, “Lacan et la réciprocité”, Lacan et la réciprocité, 2008, http://dominique.temple.free.fr/reciprocite.php?page=reciprocite_2&id_article=202
[6] Le « Tiers » est ce qui défusionne l’enfant de la mère, lui donnant ainsi accès au champ du langage et de la parole. Il permet l’assujettissement du sujet à un ordre symbolique
[7] Jacques Lacan, Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse – in : Écrits – Le Seuil – Paris,1966].
[8] Houriya Abdellouahed, « La tactilité d’une parole. Le pervers et la substance », in Cliniques méditerranéennes N° 72, Érès , p.5, http://www.cairn.info/revue-cliniques-mediterraneennes-2005-2.htm
[9] Op. Cit., p. 8.
[10] Unheimliche est un adjectif substantivé, formé à partir de deux termes : le préfixe Un, exprimant la privation et l’adjectif heimlich (familier). La traduction « l’inquiétante étrangeté, » d’abord proposée par Marie Bonaparte, ne tient compte ni de la familiarité signifié par heimlich, ni de la négation marquée par le Un.. Aussi d’autres traductions ont été proposées telle que « l’inquiétante familiarité ». Lire les remarques préliminaires de François Stirn à la traduction de « Une inquiétante étrangeté » par Marie Bonaparte et E. Marty, Profil Textes Philosophiques, Philosophie, octobre 2008, www.esparedes.pt/escola/images/freud_etrangete.pdf
[11] Le partage en deux éléments séparés a pour conséquence « que l’un participe au savoir, aux sentiments et aux expériences de l’autre, de l’unification à une autre personne, de sorte que l’on ne sait plus à quoi s’en tenir quant au moi propre, ou qu’on met le moi étranger à la place du Moi propre-donc dédoublement du Moi, division du Moi, permutation du Moi-et enfin, le retour permanent du même, » S. Freud, « Inquiétante étrangeté et clivage »,in L’inquiétante étrangeté et autres essais, Gallimard 1988, p. 236.
[12] Régine Detambel, Sigmund Freud, L’inquiétante étrangeté, Gallimard 1988, http://www.detambel.com/f/index.php?sp=liv&livre_id=656
[13] « Inquiétante étrangeté et clivage », http://theses.univ-lyon2.fr/documents/getpart.php?id=lyon2.2002.ravit_m&part=66598
[14] « Retenir simultanément deux opinions qui s’annulent alors qu’on les sait contradictoires et croire à toutes deux... Oublier tout ce qu’il est nécessaire d’oublier, puis le rappeler à sa mémoire quand on en a besoin, pour l’oublier plus rapidement encore. Surtout, appliquer le même processus au processus lui-même. Là, était l’ultime subtilité. Persuader consciemment l’inconscient, puis devenir ensuite inconscient de l’acte d’hypnose que l’on vient de perpétrer. La compréhension même du mot « double pensée » impliquait l’emploi de la double pensée.», George Orwell, 1984, première partie, chapitre III, Gallimard Folio 1980, p.55.
[15] « Les rebelles syriens ont utilisé du gaz sarin, selon Carla Del Ponte »,Op. Cit..