COVID-19 e Já não nos é permitido ver, ouvir e ler o que queremos
Agora, que a maior parte de nós, em todo o mundo, fomos obrigados a estar naquilo que facilmente pode ser descrito como prisão domiciliária, de repente temos imenso tempo para ler livros, assistir a grandes filmes e ouvir música esplêndida.
Muitos de nós andam, há anos, a repetir tristemente o mesmo: “se eu tivesse tempo…”
Agora temos imenso – imenso tempo. O mundo parou. Está a acontecer algo horrível; algo que nunca quisemos que ocorresse. Sentimo-lo, estamos aterrorizados, mas não sabemos exactamente o que é. Não já, ainda não.
A ficção tornou-se realidade. Albert Camus e a sua “Peste”. José Saramago e o seu “Ensaio Sobre a Cegueira”.
Não sabíamos que algo do género podia acontecer; mesmo aqueles entre nós que não têm qualquer confiança na sabedoria da civilização ocidental.
Ainda hoje, mais uma vez, leio os mesmos argumentos que me fazem sentir arrepios na espinha sempre que os repetem. E repetem-nos, de modo frequente agora, pelo menos na Europa. Ali, nota-se que regressou o fascismo. Citando o Dr. Luboš Motl, físico teórico checo, professor assistente na Universidade de Harvard entre 2004 e 2007:
“E acreditam que as estruturas que lhes permitem sobreviver – os governos, os bancos e por aí fora – são ‘maléficas’. Alguns são só analfabetos financeiros. Mas outros estão cientes do que afirmam e regozijam-se a exigir que se sacrifiquem triliões para evitar numa proporção infinitésima a probabilidade de que alguém com mais de 90 anos não seja infectado e viva um pouco mais. Não aceitam de todo quão dependentes estão da sociedade e do sistema. Não percebem que os seus valores morais, os seus ‘direitos humanos’, só existem se forem pagos por sociedades prósperas.”
Um doutor… Deus meu! Uma “sociedade próspera” significa, como é óbvio, uma sociedade capitalista, ocidental. Imperialismo, neo-colonialismo! Para pessoas como ele, é claro, as vidas humanas não são todas iguais. O seu ‘valor’ depende da idade, e talvez da raça?
Sempre foi assim, no Ocidente, mas pelo menos era, de certa maneira, dissimulado. Agora está à vista. E tremo. Não de medo, mas de repulsa. Definitivamente não quero viver no “mundo de Motl”.
Mas regressemos ao tema central desta peça.
Agora finalmente temos o proverbial tempo para ler, para ver filmes e para ouvir música. Involuntariamente, mas tempo não nos falta, seja como for. Temos também imenso tempo para pensar, pensar e pensar.
O grande agora falecido escritor uruguaio, ícone da esquerda, Eduardo Galeano, disse-me uma vez, no seu adorado Café Brasileiro em Montevideu:
“Para podermos ser grandes escritores, primeiro temos que ser grandes ouvintes.”
E devo acrescentar: e sermos grandes leitores, observadores.
Só podemos produzir grandes livros, filmes e ensaios, depois de ouvirmos o que milhares de pessoas dizem; pessoas ricas e pobres, brilhantes e disparatadas. Depois de lermos centenas de livros, e termos visto centenas de excelentes filmes.
É impossível mudar o mundo para melhor, quando só se consumiu a pop e a pornografia mais baratas.
A minha mãe russa/chinesa, pintora e arquitecta, sempre me disse, desde muito novo:
“Mesmo que te tornes num pintor abstracto, não podes fugir ao mais básico: primeiro tens que aprender a desenhar um rosto, um corpo humano. Tens que conhecer os clássicos, filosofia… só então podes deixar-te levar pela fantasia.”
Agora, com a repulsiva era do COVID-19, estamos todos sitiados.
É altura de nos pormos a par do que andamos a negligenciar, no que diz respeito às absorções intelectuais.
Estamos sentados nos nossos sofás, abrimos os portáteis, prontos a sacar grandes filmes e música e… e… nada!
Vão à Netflix e tentem alugar algo muito básico, como os filmes do brilhante cinema japonês da Nova Vaga. Tentem assistir ao mais recente e incrível filme iraniano contemporâneo, ou a alguma maravilhosa peça mestra checa como “No Telhado” [“Na Strese”], ou “A Senhora Terrorista” (“Teroristka”, em checo).
Não conseguem.
Vão à Apple TV, e irão encontrar o mesmo resultado, “quase nada”.
Claro, ainda podemos ver alguns excelentes filmes internacionais se voarmos na Emirates, ou na Air France, mas recorde-se, estamos sitiados.
Em pânico, corremos para o YouTube, só para descobrir que caso falemos russo, checo, espanhol ou chinês, podemos ver os melhores filmes desses países, a maior parte de graça, mas só na sua língua original, sem legendas. Mas se quisermos partilhá-los com os nossos amigos e familiares, que só dependem do inglês, só conseguimos encontrar trailers e excertos curtos.
Quantas línguas dominam os meus leitores? Eu compreendo 8, quanto muito 9. Como tal, não posso ver filmes em vietnamita, chinês ou persa. Todas línguas com excelentes realizadores.
Países como a Rússia e a China estão a disponibilizar os seus filmes clássicos, e para todos, ali, online. Mas os EUA-RU censuram-nos e os distribuidores gananciosos asseguram-se de que nunca os conseguiremos ver de graça, ou até mesmo por um certo valor, em inglês ou com legendas em inglês.
É suposto vermos porcarias de Hollywood, e sitcoms desdentadas e sobrevalorizadas da BBC. Não gosta? Azar!
A determinada altura, começamos a procurar freneticamente outras formas de obter essas importantes formas de arte.
Muitos, depois de várias e fúteis tentativas, simplesmente desistem e começam a ver a merda que estiver disponível.
Há anos e décadas, como um castor, tenho vindo a acumular DVDs e CDs, de todo o mundo. Actualmente tenho cerca de 800 CDs, entre a Ásia e a América Latina, e centenas de DVDs, até VHS.
Há uma razão para tal – e sempre soube que haveria. Não confio no regime.
Nunca confiei nos formatos electrónicos para filmes e música, ou em arquivar as minhas coisas numa qualquer ‘nuvem’ e em pens, ou esperando que o que quero estivesse sempre disponível através da Amazon, YouTube, Netflix, Apple TV e outros negócios brutais.
Neste preciso momento, as minhas previsões concretizaram-se: nem conseguimos ver “La Dolce Vita” de Fellini na Apple TV! Ou, esquecendo os melhores filmes feitos por Pasolini, os primeiros filmes (de realismo socialista) de Kurosawa, a Nova Vaga dos anos 30 de Xangai, ou quase todas as obras mestras de Tarkovsky.
Sim, amealhei uma tremenda cinemateca e discoteca, em todos os formatos.
Repito: pura e simplesmente não confio no regime ocidental.
Principalmente agora, quando tornar a população mundial cada vez mais burra, cada vez mais complacente, se tornou, parece-me, no principal objectivo dos apparatchiks ocidentais.
Lembram-se de quando criaram “zonas” para os DVDs? Foi só o princípio. O nosso planeta foi fragmentado, a bem dos negócios e dos direitos de autor. Mas, na realidade, a razão era completamente clara: não era suposto que as pessoas se compreendessem umas às outras. Não era suposto que compreendessem de modo directo o modo como os outros viam o mundo. Só os “hubs” de Londres, Nova Iorque ou Paris puderam decidir e pré-mastigar como a parte conquistada da humanidade podia interagir intelectual, cultural e ideologicamente.
Os livros; ó sim, os livros!
Não começaram a queimar livros, ainda, como no romance “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury. Repito, ainda.
Mas o sistema assegurou-se de que os livros com as mais ínfimas refutações no que toca ao sistema sejam de difícil acesso ao público.
Escusado será dizer que me assegurei de que contava com duas imensas bibliotecas pessoais, tanto na Ásia como na América Latina.
Recordem, disseram-vos quão ‘anti-ecológica’ é a edição de livros em papel? Tem piada, nunca vos disseram quão tóxicos são os tablets, os computadores e os telemóveis. O que também nunca vos disseram é que quando começamos a depender exclusivamente de livros electrónicos, essa torneira pode ser fechada, a qualquer altura, e que quando o fizerem ficará sem acesso à informação.
Na Ásia e na América do Sul, acumulei milhares de livros essenciais (e não tão essenciais). E sou co-editor de uma pequena, mas vigorosa, editora, a Badak Merah (‘Rinoceronte Vermelho’). E nunca concordei em publicar nenhum dos meus mais de 20 livros, em 35 línguas até à data, em formato digital antes de serem primeiro editados em papel.
Actualmente, por paradoxal que seja, a não ser que vivamos em Londres, Paris, Nova Iorque e também em Moscovo, Pequim ou Havana, são poucas as probabilidades de obtermos os nossos livros de eleição naquelas cadeias gigantescas de livrarias, pelo menos à primeira tentativa.
Seremos bombardeados desde o momento em que entramos na loja, com lixo, pop, e coisas de auto-ajuda, até que este nos distraia de todos os temas sérios e essenciais.
Aliás, já nem estou certo de que no Ocidente, hoje em dia, ainda seja possível construir uma grande biblioteca pessoal do nada.
Contudo, é quase impossível analisar “emergências” (tanto reais como ‘injectadas’) como o coronavírus, sem consultar filósofos e os romancistas acima mencionados, como Saramago, Camus e Bradbury.
Compreender os filósofos chineses e russos seria algo muito útil para compreender porque é que estes países obtiveram tanto sucesso a combater o vírus, e estão agora a auxiliar dezenas de nações em todo o mundo; até mesmo aquelas que há anos os atormentam. Ler os pensadores revolucionários e internacionalistas cubanos, também traria alguma luz à actual situação.
Mas a probabilidade é de que tal não lhe seja permitido.
Sim, as torneiras estão a fechar, e os ocidentais assemelham-se cada vez mais a zombies ou, mais precisamente, ao EIIL.
Em grande parte, não conseguem obter livros cruciais que os fariam pensar, analisar e compreender. Mas na maior parte do tempo, as pessoas já nem sequer têm qualquer vontade de ler, ver ou ouvir coisas que os ajudem a compreender o que está a acontecer à sua volta.
Em vez de darem ouvidos a seres humanos de todos os continentes, os indivíduos, principalmente aqueles que vivem no Ocidente, só ouvem predominantemente coisas acerca deles próprios. É uma espécie de interacção ao “estilo selfie” com o mundo.
Os indivíduos que vivem neste tipo de ambiente, aprendem a aceitar ordens simples, a reagir sem pensar demasiado e, acima de tudo, a obedecer.
Entretanto, aproxima-se o colapso intelectual; ou já terá até chegado.
Agora, pessoas como eu, apercebem-se de que já não lhes é permitido ler, assistir ou ouvir o que querem. Mas pelo menos já ouvimos muita coisa, antes. E temos uma grande munição de livros, filmes e música.
Ainda estamos a escrever sobre o que está a acontecer.
Mas em breve, talvez muito em breve, a vasta maioria dos indivíduos irá deixar sequer de se preocupar com estas questões. Irão meramente aceitar: calar-se e aceitar, e ler, ver e ouvir o que lhes empurrarem garganta abaixo. Ou, para utilizar uma nova terminologia – irão entrar numa auto-quarentena, intelectual.
Se tamanho cenário se concretizar, será irrelevante se o COVID-19 ou qualquer outra pandemia estiver a destruir a nossa raça humana. Pois já não seria a raça humana.
É por essa razão que, neste preciso momento, temos que defender todo e cada ser humano, cada vida, doente ou saudável, mesmo que a pessoa tenha 90 ou 100 anos. E temos que defender os grandes livros, obras e música, pois neles reside o nosso conhecimento, a nossa humanidade, bem como a chave para a nossa sobrevivência.
Andre Vltchek
Artigo em inglês:
COVID-19 and, We Are Not Allowed to Watch, Listen and Read What We Want, Anymore
Artigo publicado originalmente na New Eastern Outlook
Tradução: Flávio Gonçalves
Andre Vltchek é jornalista de investigação, filósofo, romancista e cineasta. Já cobriu guerras e conflitos em dezenas de países. Entre as suas obras encontramos estas quatro: China and Ecological Civilization com John B. Cobb, Jr., Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o romance revolucionário “Aurora” o e best seller de não ficção política, “Exposing Lies Of The Empire”. Pode consultar aqui as restantes obras. Veja Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo e o seu filme/diálogo com Noam Chomsky “On Western Terrorism”. Vltchek reside actualmente no Oriente asiático e no Médio Oriente, continuando a trabalhar em todo o mundo. Pode ser contactado através do seu portal, do seu Twitter e do seu Patreon.