Bielorrússia na mira do Ocidente: Entrevista com o pesquisador Paulo Henrique Tavare
ESPECIAL CRISE NA BIELORRÚSSIA
O engenheiro de petróleo Paulo Henrique Tavares vive atualmente entre a Bielorrússia e a Rússia. Doutorando na capital regional russa de Ufá, na encosta europeia dos Montes Urais, o brasileiro, natural de Santos (SP), nesta pandemia tem se dividido entre sua tese na Universidade Técnica de Petróleo do Estado de Ufá, e alguns projetos na cidade bielorrussa de Gomel, 300 km a sudeste da capital Minsque, próxima à tríplice fronteira com Rússia e Ucrânia.
Hoje funcionário especializado da Petrobrás, na década neoliberal dos anos 1990, o pesquisador foi membro ativo do movimento estudantil uspiano, destacando-se a partir dos 2000 por seu ativismo junto ao movimento de educação política e democratização da universidade pública, em que militou por projetos que se tornariam referências no ensino popular pré-universitário (Cursinhos do Crusp e da Acepusp). Era o começo da série de governos nacionais do Partido dos Trabalhadores – uma época de implementação de políticas socialdesenvolvimentistas que ele considera o início de um processo de “real democratização do país”.
Geólogo formado pela USP e mestre em Engenharia de Petróleo pela Unicamp, Paulo fala bem o russo. Em seu doutorado, desenvolve um estudo comparativo que aborda os reservatórios russos de pré-sal do norte do Mar Cáspio, relacionando-os com o pré-sal brasileiro, tema que envolve questões energéticas e geopolíticas.
Desde Gomel, onde está morando há alguns meses, Paulo atende esta reportagem, inicialmente em uma chamada telefônica – depois detalhada por correio eletrônico – enquanto caminha por um “limpo e arborizado” parque da “agradável” cidade que é a segunda maior metrópole (meio milhão de habitantes) deste país “muito organizado”. Segundo ele, esta nação eslava, que vem estando em evidência na mídia desde as últimas eleições (vencidas por Lukashenko, em agosto), “só está conflagrada mesmo é nas manchetes da grande imprensa corporativa, tendenciosa como a gente sabe”.
YMF: Paulo, primeiramente quero agradecer a atenção de sua entrevista, e pedir para que você nos conte um pouco sobre suas pesquisas e trabalho.
PHT: Minha tese parte de uma ideia construída junto com meu orientador, Yuri Katiniov, cuja proposta é cotejar o pré-sal das bacias sedimentares do sudeste do Brasil (Santos e Campos) e o pré-sal da bacia estratégica do Norte do Mar Cáspio. O intuito é compreender semelhanças e possíveis estratégias comuns energéticas, através da comparação dos reservatórios pré-sal russos, que existem aqui com a mesma configuração do pré-sal brasileiro, com a diferença de que, na Bacia do Norte do Cáspio (Rússia), tratam-se de reservatórios em terra ou em águas muito rasas, em contraste aos das águas profundas do Sudeste do Brasil. Um tema que ganha cada vez mais conotações estratégicas na geopolítica contemporânea, como temos visto, infelizmente, desde o pior ângulo, no entreguismo que caracteriza o governo brasileiro.
YMF: Como você tem entendido as manifestações de rua que vêm ocorrendo desde as últimas eleições? Qual o estado das manifestações opositoras em Gomel e Minsque? Você acredita que os confrontos podem crescer?
PHT: Aqui em Gomel, a população continua levando uma vida perfeitamente normal, e em Minsque não é diferente, apesar de no início ter havido uma ou outra manifestação mais movimentada. Toda essa versão, que se lê diariamente na grande imprensa aí do Brasil e do Ocidente, fala de uma crise que existe “apenas nos jornais” (como dizia a Marilena Chauí). Na realidade, por aqui, quase não se fala disso, especialmente nos meios mais populares.
Na prática, é como se nada tivesse ocorrendo para além das manchetes da mídia corporativa. É certo que uma semana após as últimas eleições, em agosto, houve de fato uma manifestação de maior peso, ao menos na capital; era um domingo, dia “leve”, em que têm ocorrido as manifestações mais concorridas, à semelhança daquelas recentes promovidas pelos golpistas brasileiros. Acredito que nessa data estiveram presentes um pouco menos do que as 100 mil pessoas de que a imprensa ocidental falou. Porém, nas semanas seguintes estes protestos, capitaneados por uma classe média liberal, minguaram.
Nesta manifestação de alguns dias atrás (25 de outubro), que foi o ultimato (bem equivocado, aliás) da oposição, novamente se falou em mais de 100 mil pessoas nas ruas de Minsque, mas este número não tem cabimento: avaliando e comparando as imagens das manifestações, eu diria que as de agora não passaram nem de 10 mil pessoas na capital. A polícia não divulgou estimativas, até porque por aqui não há essa tradição de manifestações; e não encontrei em russo ou bielorrusso (língua próxima, que compreendo um pouco) nenhuma fonte que compare o número de pessoas nas ruas. Mas tentei fazer essa estimativa de maneira comparativa, usando várias fotos divulgadas. Vejas que curiosas estas fotos do portal Khoroshie News [1], que vem acompanhando e apoiando este golpe colorido: na sequência de imagens deles, nota-se claramente que em agosto (início das marchas pró-Ocidente), as fotografias eram mais distantes e na praça central; porém, com o passar do tempo, elas foram se aproximando das pessoas – como que para dar aquela impressão de “mais gente”. Percebe-se também que as tomadas atuais preferiram registrar os manifestantes nas avenidas, bem mais estreitas de que a grande praça, o que naturalmente amplifica esta impressão de “multidão”.
Em Gomel, por exemplo, essas manifestações não atraem mais do que uma centena de pessoas. Enfim: a Bielorrússia só está conflagrada mesmo é nas manchetes da grande imprensa, tendenciosa como a gente sabe. Mas infelizmente, as classes médias e altas sabem fazer barulho, têm acesso a bons meios; e acaba que prevalece a versão da oposição pró-ocidental, ecoada pela mídia hegemônica – que tem muitos interesses geoestratégicos nesse processo, e que não tem nada de democrática.
YMF: E quanto às greves com que a oposição ameaça “parar o país”: as paralisações têm ganhado força? Você acredita que os trabalhadores podem se contaminar por esse desejo das elites de “ocidentalização”?
PHT: Estas greves são uma fantasia da oposição liberal. “Curioso” que no mundo inteiro greve é tratada como “coisa de vagabundo, comunista, gente que não gosta de trabalhar”, e sempre como se seus objetivos fossem somente “políticos”. Mas no caso daqui, os neoliberais convocam as greves por motivações exclusivamente politicas, e são tratados como vítimas pelo discurso “democrático” do capital.
Ainda assim, no último domingo, os opositores fizeram um amplo chamamento pela greve, mas foram ignorados pela população. Houve pequenas movimentações em algumas pequenas fábricas economicamente periféricas, mas nas grandes tudo segue em perfeito funcionamento. E a oposição murcha, como até mesmo a Folha de S. Paulo, jornal historicamente apoiador de golpes [2], admitiu estes dias.
YMF: O Índice de Desenvolvimento Humano da Bielorrússia é alto, o Índice Gini mostra que a desigualdade no país é uma das menores do mundo. Quais então as alegações para estes protestos? Quem são os grupos ou classes sociais que estão tentando desestabilizar o governo reeleito, quais suas principais reivindicações? Quanto aos apoiadores que votaram no presidente, eles também têm saído às ruas?
PHT: Voltei à Bielorussia pouco após a eleição que confirmou Aleksander Lukashenko como presidente eleito com 80%. Os protestos estão cada vez menores e restritos à capital, e acho que tendem a desaparecer. O que tenho visto em Minsque, são janelas de alguns apartamentos, em bairros de classe média, com a bandeira vermelha e branca [antiga bandeira, que foi usada por nacionalistas e cristãos, hoje símbolo da oposição]; mas no bairro onde moro, um conjunto residencial com mais de mil apartamentos, vi apenas uma única bandeira destas.
A líder da oposição, Svetlana Tsikhanouskaia que recebeu 10% dos votos, hoje está na Lituânia. Ela é esposa de um blogueiro famoso, assumidamente de direita, que foi impedido de participar das eleições por processos jurídicos; e aí, as forças de oposição lançaram o nome da esposa em seu lugar. Svetlana porém não caiu por acaso na política, mas fez diversos cursos na Irlanda [3], patrocinados por ONGs de cunho nitidamente político e antirrusso. Hoje, ela hoje vive de maneira abastada em Vilnius (capital da Lituânia), e em seus “grandes atos” nem cita o nome do marido.
O que vejo de maneira simples, é: a oposição, apesar de minoritária, foi extremamente barulhenta pelo apoio massivo que recebeu do Ocidente, especialmente dos países vizinhos, em que a direita tem estado forte nos últimos tempos: como Polônia, Lituânia e Letônia. Entretanto, conforme a mídia corporativa – voz do Ocidente – começou a dar visibilidade demais à oposição, ela (a oposição) se atrapalhou e acabou criando uma maior aceitação ao Lukashenko. Pois na prática, os opositores querem apenas seguir a cartilha neoliberal, e isso passa pela tática geopolítica da OTAN (que são as forças armadas da aliança ocidental), ou seja: tentar afastar os países próximos da poderosa Rússia, de sua esfera de influência. E isto a qualquer custo, como fizeram na Ucrânia, país hoje arrasado.
A Ucrânia, onde a aliança ocidental (EUA-UE) bancou e orquestrou um golpe contra o Viktor Yanukovicht, é hoje um país em guerra e que perdeu parte do território (a Crimeia, que antes já tinha sido russa). Vive agora da esmola ocidental para pagar os juros da dívida externa que contraiu. As tarifas básicas – luz, água, impostos e especialmente aquecimento, sem o que não dá para passar o rigoroso inverno de metros de neve – aumentaram quase dez vezes por lá. E há casos de gente que perdeu imóveis hipotecados por conta da carestia.
Dá para fazer um paralelo entre esses “golpes coloridos” e o nosso golpe jurídico e midiático da Lava-Jato: no começo as esquerdas demoraram para compreender o que estava acontecendo; muitos de nós tardamos a perceber a farsa. Na Ucrânia foi assim, mas agora na Bielorrússia, o povo demonstra estar mais atento. E além disso, por aqui o golpe tem sido muito escancarado, com participação inclusive de grupos violentos fascistas, como no caso ucraniano.
Sobre a votação massiva do atual presidente, veja que em 2015 houve eleições com números percentualmente muito próximos aos de agora. Por que a oposição não saiu às ruas? Por que o Ocidente aceitou como “limpo” aquele pleito, e não esse? Talvez porque naquele momento pós-golpe ucraniano, não coubessem dois golpes na sequência, um ao lado do outro. E talvez porque, agora, com os enfrentamentos e até provocações do Lukashenko a Moscou, o Ocidente percebeu, com este cenário, um presidente enfraquecido. Mas o Putin logo promoveu as pazes com o Lukashenko, reaproximando-se deste seu aliado estratégico.
Por seu lado, ocorreu também que a Svetlana Tsikhanouskaia foi cometendo uma série de erros políticos e aumentando a resistência entre os próprios liberais. Ela esperava que a UE e os EUA fizessem como no caso do Juan Guaidó [na Venezuela], reconhecendo ela como a presidenta “de direito”. Mas o Ocidente não ousou fazer isso; apenas impôs algumas sanções. Só que agora, a Bielorrússia não usará mais os portos da Lituânia e da Letônia, vai usar um porto russo; isso vai ter um impacto brutal na economia destes dois pequenos países, cujos portos representam boa parte do orçamento.
Recentemente, começaram a surgir protestos em defesa do Lukashenko (levantando a bandeira atual do país), um movimento que na prática é para tentar barrar os protestos que querem “ucranizar” o país. Porém, tenho achado essa movimentação ainda tímida, dada a oportunidade ímpar de se firmar. Por outro lado, os protestos da direita não assustam mais o governo, e nem o povo. Os trabalhadores ainda preferem, apesar de certo cansaço, o Lukashenko, que pode ter algumas práticas autoritárias, mas mantém importantes políticas sociais. E o povo viu de perto o que aconteceu na vizinha Ucrânia.
Na verdade, ninguém mais acredita nestes “golpes coloridos”, com exceção, a meu ver, de uma esquerda um tanto europeizada, de costumes elitizados, crente que os níveis de vida do centro capitalista – colonialista e neocolonialista – podem ser exportados, mediante apenas “boas intenções”, ao mundo periférico por ela pisado. Não percebem que o nível de vida do “centro do sistema” não poderá nunca existir na “periferia”, onde a miséria é sempre mais miserável – como bem nos lembra Florestan Fernandes.
Yuri Martins-Fontes
[Continua]
Referências