Agora só o pensamento racional pode salvar o mundo!
CENÁRIO UM: Imagine que está a bordo de um navio a afundar-se lentamente. Não há terra à vista e o seu transmissor de rádio não está a funcionar. Há várias pessoas a bordo e quer mesmo salvá-las. Você não quer que seja o fim de “tudo”.
O que é que faz?
- A) Reserva para si uma boa porção de arroz frito com camarões.
- B) Liga a televisão, que ainda está a funcionar milagrosamente, e vê as notícias sobre o futuro referendo escocês ou sobre o BREXIT.
- C) Salta de imediato para a água, tenta identificar o dano, e tenta fazer algo impensável com suas capacidades e ferramentas simples: salvar o navio.
Imagine outro cenário:
CENÁRIO DOIS: Por engano, a sua esposa ingere dois tubos inteiros de comprimidos para dormir, supostamente confundindo-os com uma nova linha de doces. Quando a encontra no chão, ela parece estar inconsciente e seu rosto está azulado.
Qual seria a sua reação?
- A) Depois de perceber que os saltos altos não combinam com a cor da meia-calça dela, você corre para o armário à procura de um par de sapatos mais condizentes.
- B) Leva-a sem demora para o quarto de banho, bombeia-lhe o estômago e tenta ressuscitá-la, ao mesmo tempo que chama o 112 usando a função de alta voz do seu telemóvel.
- C) Você recorda-se do momento em que se conheceram, sente-se nostálgico e dirige-se apressadamente para a biblioteca da sala de estar, à procura de um livro de sonetos de amor de Pablo Neruda, que recita para ela, emocionado, ajoelhado no tapete.
Agora prepare-se para ter uma grande surpresa. Se não escolher C) no cenário UM, e B) no cenário DOIS, ainda assim você poderá ser realmente considerado absolutamente “normal” de acordo com os padrões dominantes, quer nos EUA quer na Europa.
E se optar por C) ou B), respetivamente, pode facilmente passar por extremista, um fanático ideológico e um esquerdista radical.
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O Ocidente conduziu o mundo para perto do colapso total, mas os cidadãos, mesmo os intelectuais, continuam teimosamente a recusar-se a entender essa evidência. Como avestruzes, muitos estão a esconder a cabeça na areia. Outros, estão a portar-se como um cirurgião que opta por tratar o doente de um pequeno corte no dedo, ignorando que ele está realmente a morrer, devido a um terrível ferimento causado por uma bala no peito.
Parece haver uma ausência enorme de pensamento racional e, especialmente, da capacidade das pessoas compreenderem, em toda a sua dimensão, as ocorrências e eventos de âmbito mundial. Há anos que venho a defender que a destruição da capacidade de comparar e ver as coisas a partir de uma perspetiva universal tem sido uma das diligências mais bem-sucedidas levadas a cabo pelas instituições de doutrinação ocidentais (através da educação, média/desinformação e “cultura”). Elas têm efetivamente influenciado e pacificado tanto as pessoas no Ocidente como as que vivem nas suas colónias, atuais e antigas, (particularmente as “elites” locais e os seus descendentes).
Parece não haver nenhuma capacidade de comparar e analisar consistentemente, por exemplo, as ações certamente desagradáveis, mas principalmente defensivas tomadas pelos governos e países revolucionários, com os crimes mais horríveis e terríveis cometidos pelos regimes colonialistas do Ocidente em toda a Ásia, América, Médio Oriente e África, que ocorreram quase na mesma época histórica.
Não é só a história que é vista no Ocidente através de lentes totalmente distorcidas e “fora de foco”, é também o presente, que tem sido percebido e “analisado” de uma maneira fora do contexto e sem se aplicar praticamente nenhuma comparação racional. Os países rebeldes e independentes da Ásia, da América Latina, da África e do Médio Oriente (a maioria deles foram realmente forçados a defender-se de ataques extremamente brutais e a opor-se a campanhas de subversão impulsionadas pelo Ocidente) foram criticados, mesmo nos chamados círculos “progressistas” do Ocidente, usando padrões muito mais severos do que aqueles que são aplicados tanto à Europa como à América do Norte, duas partes do mundo que têm espalhado continuamente o terror, e infligido a destruição e sofrimentos inimagináveis a pessoas de todos os cantos do mundo.
A maioria dos crimes cometidos pelas revoluções de esquerda foram cometidos em resposta direta a invasões, subversões, provocações e outros ataques vindos do Ocidente. Quase todos os crimes mais terríveis cometidos pelo Ocidente foram cometidos no exterior e foram dirigidos contra pessoas escravizadas, exploradas, completamente saqueadas e indefesas em quase todas as partes do mundo.
Agora, de acordo com muitos, o “fim do jogo” está a aproximar-se. Os oceanos em ascensão estão a engolir países inteiros, como testemunhei em várias partes da Oceânia. É uma visão horrível, indescritível!
Milhões de pessoas, em numerosos países governados por regimes pró-Ocidente, estão a sair dos seus países, enquanto algumas nações estão basicamente deixando de existir, como a Papua ou Caxemira, para dar apenas dois exemplos óbvios.
O meio ambiente está completamente arruinado nas zonas onde, há apenas algumas décadas atrás, os “pulmões” do mundo costumavam funcionar, mantendo o planeta saudável.
Dezenas de milhões de pessoas estão agora em movimento, já que os seus países foram completamente arruinados pelos jogos geopolíticos ocidentais. Em vez de influenciar e ajudar a guiar a Humanidade, culturas tão antigas como as do Iraque, Afeganistão e Síria são agora forçadas a produzir milhões de refugiados desesperados. Estão apenas a tentar sobreviver, humilhadas e pouco relevantes.
Os grupos religiosos extremistas (de todas as religiões e, definitivamente, não apenas pertencentes à religião muçulmana) estão a ser preparados pelos ideólogos e estrategas maquiavélicos ocidentais, e estão espalhados por todos os cantos do globo: Ásia do Sul, Médio Oriente, China, América Latina, África e até na Oceânia.
O imperialismo conseguiu reduzir nossa Humanidade a uma desgraça total.
A maior parte do mundo está realmente a tentar funcionar “normalmente”, “democraticamente”, seguindo seus instintos naturais, que são baseados no simples humanismo. Mas acaba repetidamente por descarrilar, atacado e atormentado pela brutal, monstruosa e impiedosa hidra – o expansionismo ocidental e a sua “cultura” ou niilismo, ganância, cinismo e escravidão.
É óbvio para onde estamos a caminhar enquanto raça humana.
Nós queremos voar, queremos liberdade, otimismo e beleza para governar as nossas vidas. Queremos sonhar e criar algo profundo, significativo, feliz e amável. Mas há aqueles pesos horríveis que nos penduram nos pés. Há correntes que restringem as nossas ações. Há um medo constante, que nos está a levar a trair todos os nossos ideais, assim como a trair-nos uns aos outros, uma e outra vez; medo que nos faz, a nós seres humanos, agir como covardes e egoístas sem vergonha. Como resultado, não voamos, estamos apenas a rastejar, e nem mesmo para a frente, mas em elipses e círculos bizarros, irracionais.
Ainda assim, não acredito que o “fim do jogo” seja inevitável!
Há muitos anos que faço advertências, tenho escrito, mostrado e apresentado milhares de terríveis imagens de destruição, do colapso irreversível, da barbárie.
Praticamente, não guardei nada para mim. Utilizei os frutos do meu trabalho, dos meus filmes e livros, em novas viagens para os abismos mais escuros do nosso mundo. Não recebi quase nenhum apoio de terceiros. Mas não posso parar: o que tenho testemunhado, o perigo para o planeta e a devastação total, forçam-me a nunca desistir da luta. Sempre que foi necessário, e na maioria das vezes, eu estive sozinho. Passei muito tempo na América Latina; não posso desistir. Aprendi muito com Cuba e em tantos outros lugares maravilhosos; senti que não tinha o direito de me render.
Sempre que os horrores de que nosso planeta está sofrendo me sobrecarregam, posso ‘colapsar’, como aconteceu no ano passado. Então enterro-me em algum lugar por um curto período de tempo, reúno-me comigo mesmo, levanto-me e continuo o meu trabalho e a minha luta. Nunca deixei de confiar nas pessoas. Alguns vêm cheios de entusiasmo inicial, oferecem muito, depois traem-me e saem. Ainda assim, nunca perdi a fé nos seres humanos. Este ano, em vez de desacelerar, eu ‘adotei’ mais um lugar, que está em agonia – o Afeganistão.
O meu único pedido, a minha única exigência foi, que o mundo escutasse, que visse, que tentasse compreender, antes que seja tarde demais. Este meu pedido provou ser, percebo-o agora, tido também como “exigente”, e “radical”.
Às vezes pergunto: consegui muito? Abri os olhos a muita gente? Consegui construir muitas pontes entre as diferentes partes do mundo em luta? Como um internacionalista tenho de questionar as minhas próprias ações, a minha eficácia.
Tenho que admitir, honestamente: não sei as respostas para minhas próprias perguntas. Mas continuo a trabalhar e a lutar.
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O mundo parece diferente se observado e analisado a partir de um pub na Europa ou na América do Norte, ou se alguém estiver de pé num daqueles atóis no meio do Pacífico Sul (Oceânia) que estão sob o assalto constante da maré das ondas, pontilhadas com raízes das palmeiras mortas que apontavam de forma acusadora para o céu. Essas ilhotas estão na vanguarda da batalha pela sobrevivência do nosso planeta, e estão obviamente a ser derrotadas.
Tudo também parece ser muito mais urgente, mas também “real”, quando observado a partir das planícies negras e desoladas das ilhas indonésias, desesperadamente alagadas, de Bornéu/Kalimantan e Sumatra.
Eu costumava relatar nos meus ensaios, apenas para os leitores ficarem a saber, como ficavam as aldeias nalguns lugares, como em Goma na República Democrática do Congo (RDC), e como se sentiam as pessoas, após os assassinatos perpetrados por assassinos pró-Ruanda e, portanto, pró-Ocidente. Milícias. Era importante para mim explicar como as coisas são “no meio delas”, no terreno. Eu costumava escrever sobre estupros e mutilações em massa, sobre a carne queimada, a tortura terrível…Parei há algum tempo. Ou se testemunha tudo isso pelo menos uma vez ou simplesmente não se testemunha. Se se testemunha, sabe-se o que é, o que se sente e a que cheira…ou então nunca se poderá imaginar, por muitos livros e relatórios que se leia, por muitas imagens que se vejam.
Tenho tentado falar sobre tudo isto com as pessoas no Ocidente, em conferências, universidades, ou mesmo através dos meus filmes e livros. Elas escutam, principalmente com respeito. Elas mostram-se educadamente indignadas e ‘horrorizadas’, elas ficam (como é “esperado” que fiquem). Alguns dizem: ‘Eu quero fazer alguma coisa’. A maioria não faz absolutamente nada, mas mesmo quando decidem agir, é geralmente para si mesmos, apenas para se sentirem bem, para se sentirem melhor, para convencerem a própria consciência de que realmente “fizeram pelo menos algo pela Humanidade”.
Eu costumava culpá-los. Já não o faço. É assim que o mundo está organizado. No entanto, tenho reduzido drasticamente as visitas de trabalho tanto à América do Norte como à Europa. Eu não sinto empatia com as pessoas nesses lugares. Não pensamos da mesma maneira, não sentimos o mesmo, e mesmo a nossa lógica e razão são diametralmente diferentes.
A minha recente estadia de três semanas na Europa revelou-me claramente o quão pouco há de comum entre o estado mental do Ocidente e a realidade em que a grande maioria do mundo tem vivido.
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No passado, antes que os impérios ocidentais e o único “Império”, tivessem esvaziado os povos da maior parte da sua determinação e do seu entusiasmo, os seres humanos mais talentosos não faziam distinção entre as vidas pessoais, a sua criatividade e o seu implacável trabalho e dever para com a Humanidade.
Em vários lugares, incluindo Cuba, é assim que muitas pessoas ainda vivem.
No Ocidente, todos e tudo está agora fragmentado e a própria vida tornou-se objetivamente sem sentido: há um tempo distinto para trabalhar (satisfazer a carreira pessoal, garantir a sobrevivência, avançar “prestígio” e ego), um tempo para brincar e a vida familiar… e ocasionalmente há tempo para pensar sobre a Humanidade ou, muito raramente, sobre a sobrevivência do nosso planeta.
Escusado será dizer que, essa abordagem egoísta falhou na ajuda necessária para fazer avançar o mundo. E também fracassou diretamente quando se tratou de parar, pelo menos algumas, das monstruosidades cometidas pelo imperialismo ocidental.
Quando vou à ópera ou a algum grande concerto de música clássica, é para obter uma inspiração profunda, para me entusiasmar com o meu trabalho, para reciclar a beleza que exprimo nos meus romances e filmes, peças de teatro e até relatórios políticos. Nunca vou para ficar simplesmente “entretido”. Nunca é, pelas minhas próprias necessidades, somente.
Também é essencial para mim trabalhar em estreita colaboração com as pessoas que amo, incluindo a minha mãe, que já tem 82 anos.
É porque eu sei que não há absolutamente nenhum tempo para desperdiçar. E também porque tudo é, e deve estar entrelaçado na vida: amor, trabalho, dever, luta pela sobrevivência e progresso do nosso mundo.
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Posso ser rotulado como fanático, mas estou decididamente a escolher as opções C) e B) dos “dilemas” que descrevi acima.
Estou a escolher a racionalidade, agora que a “armada” dos EUA repleta de armas nucleares está a navegar em direção à China e à Coreia do Norte, agora que os mísseis Tomahawk caíram sobre a Síria, agora que o Ocidente vai enviar mais milhares de mercenários para um dos países mais devastados da Terra – o Afeganistão.
Sobrevivência e, em seguida, o avanço do mundo deve ser o nosso maior objetivo. Eu acredito nisso e fico de pé. Em tempos de crises absolutas, que estamos vivenciando agora, é irresponsável, quase grotesco, simplesmente ‘continuarmos a viver a nossa vida diária’.
O imperialismo tem que ser travado de uma vez por todas, por todos os meios. No momento em que a sobrevivência da Humanidade está em jogo, o fim justifica todos os meios. Ou, como reza o lema do Chile: “Por razão ou por força”.
Naturalmente, se aqueles “que sabem” não agirem, se forem covardes e oportunisticamente não fizerem nada, de uma perspetiva universal, nada de muito significativo acontecerá: um pequeno planeta numa de tantas galáxias simplesmente deixará de existir. Há muitos planetas habitados no universo, muitas civilizações.
No entanto, eu adoro este mundo e este Planeta particular. Eu conheço-o bem, desde a ponta mais ao sul, todo o caminho para o norte. Eu conheço os seus desertos e vales, montanhas e oceanos, as suas criaturas maravilhosas e tocantes, as suas grandes cidades e aldeias abandonadas. Conheço os seus povos. Eles têm muitas falhas; pelas quais em muito os podemos condenar, e muito deve ainda melhorar. Mas acredito que, no entanto, ainda são mais merecedores de admiração do que de denúncia.
Agora é hora de pensar, racional e rapidamente, e então agir. Nenhum remendo pequeno será suficiente, nada de ações para “sentir-se bem”. Apenas uma recomposição total, revisão. Chame-lhe a Revolução, se você quiser, ou simplesmente C) e B). Não importa como você o defina, mas algo terá que vir rapidamente, muito rapidamente, ou em breve não haverá mais nada para amar, defender e trabalhar, nunca mais.
Andre Vltchek
Artigo original em inglês :
Now Only Rational Thinking Can Save the World!
Tradução : Júlio Gomes (Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, atualmente reformado.)
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Andre Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu guerras e conflitos em dezenas de países. Três de seus últimos livros são o romance revolucionário “Aurora”, e dois bestsellers, obras de não-ficção política: Expondo as mentiras do Império e Luta contra o imperialismo ocidental. Veja outros livros aqui. André está fazendo filmes para teleSUR e Al-Mayadeen. Assista a Ruanda Gambit, seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo. Depois de ter vivido na América Latina, África e Oceânia, Vltchek atualmente reside na Ásia Oriental e no Médio Oriente, e continua a trabalhar em todo o mundo. Ele pode ser contactado através do seu website e pelo Twitter.